A banalização da democracia
É preciso saber criticar o gesto autoritário, venha ele de onde vier
Viramos o País dos manifestos. De um lado, a “carta pela democracia”; de outro, o “manifesto pelas liberdades”. De um lado, desconfia-se de que qualquer crítica às urnas eletrônicas seja, na prática, um ataque à democracia; de outro, que a “defesa da democracia” não vá muito além de uma jogada eleitoral. Um colega sarcástico resumiu tudo de um jeito simples: “Quem não gosta do Bolsonaro assina uma, quem gosta assina outra”. E completou: “Leva o troféu da democracia quem fizer mais barulho na internet”. Talvez ele tenha razão, mas prefiro ver nisso tudo um sintoma. A democracia entrou no debate eleitoral. Deveríamos estar discutindo sobre como fazer o país crescer e erradicar a pobreza, mas parece que voltamos à adolescência dos anos 80, 34 anos depois da Constituição.
As responsabilidades por esse estado de coisas começam com Bolsonaro. Ele poderia ter optado por ser um conservador litúrgico, mas seguiu a trilha do populismo eletrônico. Desde o início, pautou-se por uma fraseologia dúbia no tema democrático. Frases do tipo “Ou eleições limpas, ou não teremos eleições” foram jogando desconfiança no debate público. Um graduado do governo me diz que é só discurso, que o presidente é apenas “autêntico”. Respondi que as palavras contam na democracia. Foi com palavras que Trump atiçou os “cabeças de bisão” na invasão do Capitólio. E, cá entre nós, não foram apenas palavras. Houve processos do governo contra cidadãos, usando a finada Lei de Segurança Nacional. Um deles foi contra o Guilherme Boulos, por um tuíte falando de Luís XIV e da guilhotina. Obviamente não deu em nada. O Executivo é um tigre sem dentes nessas coisas, mas deu o sinal que ajudou a colocar lenha na fogueira que vai queimando por estes dias.
O Supremo e o TSE são tigres de verdade e foram bem além da retórica. Além do discurso oposicionista e nada litúrgico por parte de alguns ministros, um dos quais comparando o país à Alemanha dos anos 30, criou-se em Brasília um ensaio de Estado policial. O inquérito das fake news reinstalou a censura prévia no país. Jornalistas foram presos sob acusações vagas de “ameaça às instituições”; blogueiros foram censurados por mentir sobre as urnas eletrônicas; criou-se o “crime de inverdade”, à revelia da Constituição, e ao menos um partido, o PCO, foi censurado sob acusação de “ameaçar a democracia”. Tudo sob o aplauso da oposição e parte relevante da imprensa.
“É preciso saber criticar o gesto autoritário, venha ele de onde vier”
A oposição desde sempre apostou na lógica do “inominável”. “Bolsonaro só é legítimo formalmente”, escutei em um debate. No mais, é uma “doença a ser extirpada”. O que disser, é fake; o que fizer, é uma “ameaça”. E qualquer dado positivo, na economia, é obra do acaso. No Brasil, confundimos fazer oposição com um tipo de guerra de extermínio, e isso não vale apenas para a atual oposição. A lógica do “risco democrático” é infalível. Mesmo que não exista golpe nenhum, quem dirá que não há um risco? Quem dirá que não devemos estar “vigilantes”, como escutei de um bom interlocutor. Tudo devidamente embalado pela tese vaporosa das “democracias que morrem por dentro”, que permite, no limite, qualquer argumento impressionista. Um tuíte esquisito do general Heleno? Uma recusa de investigação por parte da PGR? As rachadinhas? Aquela frase sobre o “nosso Exército” no Maracanãzinho? Não seriam sinais? É nessa toada que passamos os últimos anos. O “golpe da fumacinha”, naquele desfile de tanques, em Brasília; o “golpe do general Braga Netto”, que teria ameaçado o presidente da Câmara para aprovar o voto impresso; o “golpe do Sete de Setembro”, quando aconteceria, segundo editoriais, a “invasão do Congresso”. Tudo isso pode soar um tanto ridículo, mas foi pauta da espuma política brasileira nos últimos anos.
Fiz um teste. Conversei sobre os manifestos com um ilustre opositor e um ilustre apoiador do governo. O primeiro me disse: então vamos silenciar diante das “ameaças” de Bolsonaro? O segundo inverteu o problema: então vamos silenciar diante das “agressões” do STF? De certo modo, ambos tinham razão. Seu problema era o olhar caolho. A polarização extrema é um dilema do prisioneiro em que ambos os lados jogam “trair”. E a solução possível é observar o jogo a certa distância. Saber criticar a palavra e o gesto autoritário, venha ele de onde vier. É pífia a posição que se esquece do uso da Lei de Segurança Nacional, feito pelo governo, tanto quanto é o “faz de conta que não viu” de muita gente sobre a volta da censura prévia no país. É apenas com alguma isenção que se pode encarar essas coisas. Eles deixam nervosos os apaixonados, de lado a lado, mas o fato é que de passionalidade estamos cheios no Brasil atual.
O Brasil soube fazer reformas cruciais nos últimos anos. Isso nos permite hoje ter um Banco Central independente, tomando medidas duras contra a inflação; um diretor da Anvisa capaz de peitar o presidente da República, porque fizemos a lei das agências reguladoras; uma transferência de renda robusta, que exige agora formas de inserir as pessoas no mercado; e o melhor ambiente para parcerias público-privadas da América Latina, segundo o BID, porque temos o PPI e modernizamos legislações, como o novo marco do saneamento. O que o país deveria discutir, independentemente de quem vai assumir o comando em janeiro, é como fazer tudo andar para a frente, e não para trás.
Por estes dias me lembrei de uma frase de Obama, nas comemorações dos cinquenta anos de Selma. “Se não temos a consciência do quanto avançamos”, disse ele, “terminamos por perder nosso sentido de urgência.” Ele se referia aos direitos civis, e sob certo aspecto é disso que tratamos no Brasil. Nosso pacto democrático, que jamais deveria ser banalizado. Valores que há muito decidimos que não estariam mais em jogo. O fim da censura prévia, a transição pacífica de poder; a responsabilidade fiscal e as poucas reformas econômicas que fizemos, e que hoje nos permitem gerar empregos e ter alguma perspectiva de crescimento. Em especial, jamais deveríamos ceder à tentação de usar a democracia como arma política. Nem governo nem oposição. A democracia não tem dono, é um patrimônio comum. Reconheço que esse raciocínio vai na contramão da atual excitação política, mas quem sabe logo ali adiante ele será o pão de cada dia de nossa vida republicana.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801