Haveria mesmo um “iliberalismo” de esquerda? Ou “progressista”? É a pergunta que a revista The Economist fez dias atrás, com direito a chamada de capa. Por óbvio, a discussão não dizia respeito à esquerda hardcore, que gosta do modelo cubano. A questão é mais sofisticada. Ela diz respeito à corrosão de certos valores liberais que nos acostumamos a ver andando junto com as democracias e que historicamente foram defendidos pelo progressismo democrático. A liberdade de expressão era um deles. Outro era a recusa dos rituais de “purificação” da cultura. Coisas como a imensa fogueira com livros do Asterix e da Pocahontas, no Canadá, de que tivemos notícia por estes dias.
O tema é interessante por muitas razões. Nos acostumamos, nos últimos anos, a associar o iliberalismo à “nova direita”, ligada a tipos como Trump e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán. Eram eles que andavam “corroendo a democracia por dentro”. Impondo “valores cristãos”, combatendo a “sexualização das crianças”, exalando um nacionalismo cafona, desafiando ritos institucionais e regras eleitorais.
O conceito do iliberalismo apareceu em grande estilo nos anos 90. Fareed Zakaria sintetizou o tema em um artigo na revista Foreign Affairs, em 1997, dizendo que “a democracia está florescendo, o liberalismo constitucional não”. Estaríamos diante de um divórcio: fazem-se eleições, há partidos funcionando, mas um pouco abaixo da superfície vão se relativizando pilares essenciais das democracias liberais modernas: os freios e contrapesos, as garantias constitucionais, liberdade de pensamento, de reunião e de propriedade.
Vale aqui uma distinção. A democracia diz respeito basicamente a “quem governa” e às relações de poder na sociedade. A estrutura política, partidos e a alternância dos governos. O liberalismo supõe um programa muito mais amplo. Tem a ver com a limitação do poder, indo mesmo muito além das garantias constitucionais. Ele supõe uma agenda não escrita de valores envolvendo o respeito à pluralidade de visões de mundo, a tolerância cultural e uma interferência apenas muito moderada do Estado na liberdade das pessoas, inclusive no terreno econômico.
É precisamente nessas regras não escritas, da “civilidade liberal”, na boa definição que li, que estaria o calcanhar de Aquiles do iliberalismo progressista. Seus pecados são conhecidos. Aceita-se prender um jornalista “do outro lado”, sem perguntar muito o porquê; topa-se queimar livros e vetar trabalhos acadêmicos “incorretos”, banir divergentes da internet, desmonetizar canais que não dizem a “verdade”, trocar o nome de escolas e derrubar monumentos de quem não atende aos (atuais) padrões morais. A lista é longa; promover “cancelamentos”, humilhando pessoas das quais se discorda, impor padrões de fala, exigir reservas de mercado para certos grupos, alegar um direito vago a não sofrer “microagressões” em universidade e ambientes de trabalho.
Há quem diga que tudo isso é positivo e anuncia uma nova sociedade livre de preconceitos que o excesso de liberdade só tende a favorecer. Cada um pode julgar. Há muito adquiri o gosto por explicitar um problema e deixar que as pessoas cheguem a suas próprias conclusões.
“O novo iliberalismo tem aversão ao pluralismo de ideias”
Há quem argumente que o recuo iliberal do progressismo atual surgiu exatamente como reação à onda conservadora que tem marcado as democracias. Michael Powell escreveu um longo artigo no The New York Times mostrando como mesmo a icônica American Civil Liberties Union, que defendeu desde o direito à expressão dos comunistas, na era do macarthismo, até a Ku Klux Klan, nos últimos tempos recuou. O divisor de águas foi a eleição de Donald Trump e a ascensão da “nova direita”. Seus relatórios “falam na resistência ao trumpismo”, diz Powell, e não da Primeira Emenda e dos valores liberais que sempre defendeu.
O traço mais característico do novo iliberalismo é sua aversão ao pluralismo de ideias, na política e na cultura. A própria dificuldade de aceitar a legitimidade dos novos conservadores tem muito disso. Ou a tendência a reduzir a complexidade social a algumas categorias simples associadas a grupos de identidade, seja de gênero, raça ou orientação sexual. Tempos atrás participei de um debate sobre “diversidade”. Achei bacana o sentido de inclusão que todos queriam fazer avançar. Lá pelas tantas perguntei se a diversidade de ideias também estava incluída, e na hora senti o mal-estar. O que significaria “gente que pensa diferente”? “O que estaria incluído aí?”. A conversa terminou por ali mesmo.
O iliberalismo é ecumênico. Ele pode vir da direita ou da esquerda. “De maneiras distintas”, lê-se em The Economist, “ambos os extremos colocam o poder à frente do processo, os fins à frente dos meios e os interesses do grupo antes da liberdade dos indivíduos”. A tônica é a instrumentalização de valores fundamentais em nome da afirmação de um mundo perfeito, que por algum acaso “nós” representamos. Uma questão de poder, de um lado, e de medo e exclusão, do outro. À direita ou à esquerda, uma boa síntese dos novos iliberalismos poderia dizer: nós somos o lado certo da história, logo não precisamos de vocês.
Talvez a culpa disso tudo seja da própria cultura liberal e sua complexidade, que no fundo exige um pouco mais das pessoas. Um saudável ceticismo em relação às próprias ideias; a aceitação de que as pessoas são falíveis, e quem sabe o mais dolorido: defender o direito dos outros de dizerem o que pensam, mesmo quando se tem certeza de que aquilo tudo é uma bobagem altamente prejudicial à humanidade.
Isaiah Berlin costumava dizer que se você está convencido de que conhece o encaixe verdadeiro para todos os problemas humanos, então “nenhum preço a pagar é alto demais para abrir as portas desse paraíso”. A partir daí, censurar, humilhar ou banir os outros será apenas um detalhe. Sua tese vai na direção oposta: vivemos em um mundo sem encaixe possível, marcado por uma pluralidade de visões éticas a um só tempo verdadeiras e incompatíveis entre si. E que no meio dessa confusão só nos resta alguma humildade.
Não vejo melhor antídoto do que esse para os iliberalismos que rondam nossas democracias. Eles não serão combatidos com novas leis. O problema está na cabeça de quem faz e de que julga as leis. Eles habitam o mundo das ideias e da cultura, e é nesse terreno, feito de areia movediça, que devem ser enfrentados.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756