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Questão de prioridade

Se eu fosse um homem negro flagrado com maconha, estaria preso

Por Fernando Grostein Andrade Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h13 - Publicado em 27 nov 2020, 06h00
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  • A Abbot Kinney é uma das ruas mais descoladas de Los Angeles. Há restaurantes, lojas de design e de roupas de algodão orgânico e… uma loja de maconha. É a MedMen. Já falei dela algumas vezes nesta coluna, porque é realmente impressionante. São várias mesas como aquelas de joalherias, com os diversos tipos de maconha em exposição. Existem três tipos: a sativa, que deixa a pessoa acordada; a indica, que dá sono, relaxa; e os híbridos. Algumas são ricas em THC, que é o que dá barato, e outras em CBD, o componente medicinal da maconha, que contrabalanceia o THC. Essa atividade econômica cria empregos, paga impostos e gera prosperidade.

    É constatação que nos leva a tentar desatar o nó apertado na cabeça de muita gente: é preciso entender que existe diferença entre liberar, legalizar, descriminalizar e regulamentar. Descriminalizar é deixar de ser crime, e o acesso a maconha continua proibido. O usuário só não sofre sanções na esfera criminal. Esse é o modelo português. Legalizar é dar uma porta de acesso legal, portanto, o usuário tem onde comprar legalmente. Liberar é um termo utilizado geralmente por ignorantes, porque querem dar a sensação de que pode tudo e que vai chover maconha dentro da sala de aula. Por isso o termo que eu defendo é regulamentar — é a mesma coisa que legalizar, mas fica claro que existirão regras. Na porta da escola, por exemplo, não pode.

    É ilusório pensar que tornar as drogas ilegais as torna indisponíveis. Quase toda escola no mundo tem maconha rolando em um canto ou outro, assim como não há nenhum presídio no mundo livre de drogas. Se não podemos erradicar as drogas numa penitenciária de segurança máxima, como podemos acabar com elas numa sociedade livre? Essa frase não é minha, mas de Anthony Papa, amigo que ficou preso na cadeia de segurança máxima de NY por mais de uma década. Nos meus trabalhos como cineasta, filmei mais de doze penitenciárias no Brasil, uma na Colômbia e uma em Portugal, além de ter entrevistado mais de 200 pessoas sobre esse tema. Escrevo, portanto, com propriedade.

    “É ilusório pensar que tornar as drogas ilegais as torna indisponíveis”

    Também tenho propriedade em falar que já fumei maconha na minha vida. Não foi uma vez, foram várias. O que realmente importa é que, se eu for parado com maconha no Brasil, vou ser detido, porque assim manda a lei, mas serei liberado. Uma vez eu estava apenas ao lado de pessoas fumando, fomos abordados pela polícia, tomei um soco entre as pernas e fui liberado. Contudo, se eu fosse negro, estaria na cadeia. Este é o grande ponto: a maconha foi proibida por motivações raciais e a proibição é uma das grandes responsáveis por agravar as injustiças sociais e desperdiçar dinheiro público.

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    Muito dos expoentes do setor financeiro se orgulham em defender racionalidade, mas são tímidos nos seus relatórios de recomendação em dizer o óbvio: o Brasil desperdiça dinheiro público tentando enxugar gelo, deixa de arrecadar recursos e quando se fala em equilibrar as contas a receita é uma só: cortar recursos para os mais pobres e não taxar o andar de cima. Por que, na Faria Lima, avenida que dita tendências no Brasil, na justa da defesa das reformas no Estado brasileiro, esse assunto é sempre deixado de lado? Se yuppies fossem para a cadeia quando fumassem ou vendessem maconha para pagar as contas, o enredo seria outro. Como tudo na vida, é questão de prioridade.

    Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715

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