Este Fernando que escreve aqui não sou eu. É a projeção da minha imagem pública. Mais seguro, sem algumas gaguejadas, sem a voz que, diziam alguns, não era de homem, por ser afeminada. Esta aqui é minha persona, como colunista de VEJA. Nesta nova década, essa defasagem vai acabar — não porque eu queira abrir mão da minha privacidade, mas porque a privacidade de todos vai acabar.
Recentemente, o The New York Times publicou um artigo recomendando alerta máximo a seus leitores sobre a questão da privacidade. Segundo o Times, com relativa facilidade, seus repórteres rastrearam passos de funcionários da CIA e do Pentágono, cruzando dados de fontes diversas. O Facebook admitiu há pouco tempo que continua rastreando a localização de seus usuários, mesmo quando essa opção está desabilitada. E, pior, por meio de uma mensagem de WhatsApp, até o dono da Amazon teve sua privacidade hackeada. Transcrições do telefone do empresário Rick Singer revelaram um megaesquema de compra de vagas nas maiores universidades dos Estados Unidos, de Harvard a Stanford, entre outras. Ou seja, todo mundo sabe e vai saber de tudo. Estamos nus. E todos temos nossos pecados, ainda que em diferentes graus e gravidades.
“Todos temos nossos pecados, ainda que em diferentes graus. Exercitar o perdão é urgente”
Exercitar o perdão, portanto, é urgente. Uma nova moral será forjada, obrigando a diminuir o abismo entre a imagem pública e a vida privada. São tantos os casos de congressistas homofóbicos que depois admitiram seus relacionamentos gays que é muito fácil observar a ligação entre moralismo e mentiras. Lembro até de um pastor, conhecido apresentador de televisão, que, num ato falho, foi mostrar o seu celular e sem querer revelou um aplicativo de paquera gay. Aliás, por falar nisso, parem com essa mania de falar que um dos filhos do presidente-em-quem-jamais-votei é gay. Primeiro porque ser gay não é problema; segundo, porque, se ele for e não quer contar, é problema dele.
A busca de coerência é necessidade de primeira ordem. Se antes era possível dizer uma coisa e fazer outra, agora não é mais. Mas ninguém é à prova de grampo; até os pais são capazes de falar mal do filho que amam, porque afinal eles são humanos, mudam de ideia, têm seus momentos de raiva, inveja, de perder a cabeça. A brincadeira favorita dos últimos anos — pegar um trecho de uma mensagem privada, ou de uma fala, tirá-lo do contexto e exibi-lo — perderá a graça à medida que, paulatinamente, a intimidade de todos for cruelmente exposta.
Jesus Cristo, a personificação do cristianismo, representa o fim da exploração dos mais pobres, o perdão dos pecadores (todos eles, dos pecados sexuais aos lava-jatos da vida). O especial de Natal dos geniais integrantes do grupo Porta dos Fundos, portanto, cabe numa noção correta de cristianismo, pois supõe duas hipóteses: (1) Deus e seu filho têm senso de humor; e (2) Cristo veio para perdoar, e não para crucificar. A imagem de Cristo é explorada a torto “pela ala ruim da direita” para iniciar caçadas e agressões que nada têm a ver com a mensagem religiosa. Que isso tudo sirva para que Cristo ganhe um novo significado, muito mais próximo de sua essência do que parte do seu fã-clube pretende. Nos anos 2020, o que será crucificado é a hipocrisia.
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672