Passada a ‘zuera’ – porque ninguém é de ferro -, este blog tem de fazer algumas distinções fundamentais:
A denúncia do Ministério Público de São Paulo contra Lula pelos crimes de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica no caso do tríplex no Guarujá reúne várias evidências sólidas, tendo consistência para ser acatada pela juíza Maria Priscila Ernandes Veiga Oliveira.
A leitura do documento confirma a declaração de Cássio Conserino em entrevista coletiva na tarde de quinta-feira: “A investigação se consubstanciou em provas processuais e documentais. Duas dezenas de pessoas nos relataram que o tríplex do Guarujá era destinado ao ex-presidente Lula e sua família, entre elas funcionários do prédio – a porteira, o zelador -, moradores, funcionários da OAS, ex-funcionários”, disse o promotor do caso, acrescentando que Lula era “mascote” dos corretores, que usavam seu nome para vender imóveis no condomínio: “Você vai poder jogar bola com Lula”, diziam.
Já o pedido de prisão preventiva de Lula, anexado à denúncia, consiste mais em crítica dos promotores às demonstrações de desprezo de um ex-presidente da República às instituições nacionais do que em exposição de elementos juridicamente válidos de que Lula atenta contra a ordem pública, poderia destruir provas e fugir facilmente, além de inflamar a militância para blindá-lo de qualquer investigação.
O fato de terem sido abomináveis as declarações de Lula após sua condução coercitiva pela Operação Lava Jato, tanto em discurso para a militância do PT quanto ao fundo do vídeo gravado e divulgado pela desatenta aliada Jandira Feghali, não necessariamente justifica a restrição à sua liberdade.
Afirmar que “era só [o juiz Sérgio Moro] ter convidado [a depor]”, “preferiram utilizar a prepotência, a arrogância”, “é lamentável que uma parcela do Poder Judiciário brasileiro esteja trabalhando em associação com a imprensa”, ou mesmo ser flagrado em conversa privada dizendo “eles que enfiem no c* todo o processo” – tudo isto se passa, do ponto de vista jurídico, por mera manifestação de pensamento.
A indicação de que Lula amarelou para Conserino em fevereiro, pedindo e comemorando com divulgação de foto a obtenção de uma liminar para suspender seu depoimento, tampouco exemplifica que as manobras do ex-presidente para não ser investigado sejam de algum modo ilícitas.
“Assim é que deseja ‘ser convidado’ para ser ouvido; deseja ‘escolher’ quem poderá investigá-lo; decide se seus familiares poderão ou não sofrer investigações”, apontam os promotores, seguramente cobertos de razão em cada um dos pontos sobre o comportamento de Lula, embora nenhum deles seja um argumento forte para a decretação de uma prisão preventiva.
É verdade, também, que “sua ira contra as instituições do Sistema de Justiça leva todo e qualquer cidadão a se sentir no mesmo e ‘igual’ direito de fazê-lo”, mas todos, de fato, têm a liberdade de manifestar dentro dos limites da lei, sob influência ou não de Lula, sua ira contra decisões judiciárias – e o fato de que Lula mente quando a manifesta não implica ameaça à ordem pública.
O pedido de apoio à militância, ainda que já tenha resultado em badernas e episódios de violência apontados pelos promotores, também se passa por liberdade de expressão de Lula à medida que suas declarações não constituem apologia direta a um crime específico.
Os promotores alegam que Lula mobilizará “toda a sua ‘rede’ violenta de apoio para evitar que o processo crime que se inicia com a presente denúncia não tenha seu curso natural, com probabilidade evidente de ameaças a vitimas e testemunhas e prejuízo na produção das demais provas do caso, impedindo até mesmo o acesso no ambiente forense, intimidando-as a tanto”.
Ninguém que tenha conhecimento do histórico do PT ou simplesmente das recentes denúncias de Delcídio do Amaral sobre Lula ter mandado comprar o silêncio de Nestor Cerveró e Marcos Valério pode duvidar dessa eventual mobilização, o problema é que ela constitui apenas uma probabilidade, sem base jurídica forte para legitimá-la como um risco a ser evitado com uma medida extrema.
(Este blog acha, sim, um risco deixar Lula solto. Mas sabe distinguir requisitos jurídicos de opiniões pessoais.)
Os promotores ainda criticam o fato de Dilma Rousseff ter saído em defesa – “valendo-se de meios públicos, e não privados, de transporte” – de “pessoa que não ocupa qualquer cargo público, mas que guarda em comum com a chefe máxima do Governo Federal a mesma filiação partidária”. Para eles, Dilma “deveria se abster” de opinar sobre esses fatos, “porquanto relativos a decisão judicial relacionada a investigação que não guarda qualquer relação com os atos do Governo Federal”.
Mais uma vez, estão cobertos de razão como críticos, pois o “apoio” da suposta presidente, “erigindo-o a patamar de cidadão ‘acima da lei’” para “blindá-lo” é “inaceitável” – mas é inaceitável na esfera moral e política, não na criminal, ao menos no caso do denunciado.
Os floreios retóricos usados pelos promotores tampouco contribuem para a força do pedido – na verdade, apenas dão margem à sua ridicularização. Além da citação pitoresca de Friedrich Nietzsche com a frase “Nunca houve um Super-homem” e de apelações como “o verdadeiro caos para o tão sofrido povo brasileiro”, eles confundiram o teórico marxista Engels com o filósofo Hegel ao afirmar desnecessariamente que as condutas de Lula, o primeiro torneiro mecânico a assumir a presidência, “deixariam Marx e Hegel envergonhados”.
Por essas e outras, “integrantes de peso do Ministério Público Federal classificaram o pedido de prisão de Lula como ‘loucura’”, segundo a Folha, e avaliaram “que o Ministério Público Estadual deveria ter se limitado à denúncia”.
Não há dúvida de que os procuradores da Lava Jato são muito mais cuidadosos e objetivos que os promotores do MP-SP – e é possível que, por causa da largada queimada por estes últimos, tenham de redobrar os cuidados preventivos para pegar o “chefe”.
“Considerei um exagero esse pedido de prisão do Lula. Não vi razões para isso”, comentou também o senador Aécio Neves.
Uma “razão” possível é que os promotores tenham optado pela velha estratégia de negociação – usada há décadas pelo PT nos tribunais e na política – de pedir mais para conseguir mais, ou seja: pedir a preventiva de Lula para conseguir ao menos que a juíza Maria Priscilla receba a denúncia.
O perigo dessa estratégia é que a fragilidade de um acabe tirando a legitimidade da outra, como quer a propaganda petista, já empenhada em colocar tudo no mesmo saco político e tirar a legitimidade até da Lava Jato, que nada tem a ver com a história.
Mas este blog acredita que Maria Priscilla poderá tomar uma decisão pragmática.
Com mais de 16 anos de carreira, ela é tida por promotores, magistrados e advogados como ortodoxa, de linha dura, que aplica penas altas e não costuma revogar prisões ou conceder liberdade provisória.
Se aceitar a denúncia, mesmo descartando a preventiva, nada impede que Lula seja preso mais adiante.
Na esfera política, a despeito dos analistas apavorados de sempre, o vitimismo crescente de Lula continuará concorrendo com a repercussão negativa da denúncia contra ele e dos crimes pelos quais pode ser preso, ainda que não agora.
Isto sem contar que o impacto do pedido do MP neste momento tende a fortalecer a adesão à manifestação popular de domingo, 13 de março; e a escancarar a possível manobra de Lula de se proteger das investigações assumindo um cargo no governo de Dilma Rousseff.
Dilma, na verdade, ofereceu-lhe logo em seguida a chefia da Casa Civil, mas, por enquanto, Lula evita fortalecer ainda mais o 13 de março aceitando o convite – e prefere aguardar a repercussão do ato (e da denúncia) para avaliar qual lhe é a melhor opção.
Apesar de tudo, “nunca antes na história deste país” um ex-presidente da República teve prisão preventiva pedida pelo Ministério Público.
Lula, o Brahma, é o número 1.
Parabéns!
Felipe Moura Brasil ⎯ https://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil
Siga no Twitter, no Facebook e na Fan Page.