Gilmar Mendes fez mais do que cortar as asas da jararaca Lula, suspendendo na noite de sexta-feira sua nomeação como ministro.
Mendes também desmascarou em detalhes a versão oficial do governo para o conteúdo de uma das conversas entre Dilma Rousseff e Lula interceptadas por escuta telefônica da Operação Lava Jato.
Com uma clareza exemplar, o texto do ministro do STF expõe tecnicamente a fraude tramada para salvar Lula da prisão com um termo de posse fajuto oferecido por Dilma.
Qualquer observador isento pode verificar que o embasamento jurídico da decisão afasta a hipótese de que Mendes, como crítico do PT, tenha feito simplesmente uma escolha política, a ser facilmente derrubada em recurso de José Eduardo Cardozo ao plenário.
Não é o caso.
Se os demais ministros quiserem derrubar a decisão de Mendes, terão de renovar o estoque de malandragens gasto com o rito de impeachment.
Vamos por partes, resumindo o documento (cuja íntegra está aqui).
1) Mendes primeiro cita o precedente que eu havia resumido à tarde no Twitter:
Diz o ministro:
“A partir do caso Natan Donadon, o STF consolidou jurisprudência no sentido de que a renúncia a cargos públicos que conferem prerrogativa de foro, com o velado objetivo de escapar ao julgamento em iminência, configura desvio de finalidade, inapto a afastar a competência para o julgamento da causa – AP 396, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgada em 28.10.2010.
A situação aqui envolve o contrário. A alegação é de que pessoa foi nomeada para o cargo de Ministro de Estado para deslocar o foro para o STF e salvaguardar-se contra eventual ação penal sem a autorização parlamentar prevista no art. 51, I, da CF.”
2) Mendes mostra como a mudança de foro prejudica as investigações contra Lula:
“Havia investigações em andamento, que ficariam paralisadas pela mudança de foro, uma delas que ensejou medidas de busca e apreensão contra Luiz Inácio Lula da Silva – Operação Aletheia, desdobramento da Lava Jato. Havia uma denúncia pendente de apreciação, acompanhada de um pedido de decretação de prisão preventiva – caso Bancoop.
É muito claro o tumulto causado ao progresso das investigações, pela mudança de foro. E ‘autoevidente’ que o deslocamento da competência é forma de obstrução ao progresso das medidas judiciais. Não se nega que as investigações e as medidas judiciais poderiam ser retomadas perante o STF. Mas a retomada, no entanto, não seria sem atraso e desassossego. O tempo de trâmite para o STF, análise pela PGR, seguida da análise pelo relator e, eventualmente, pela respectiva Turma, poderia ser fatal para a colheita de provas, além de adiar medidas cautelares.
Logo, só por esses dados objetivos, seria possível concluir que a posse em cargo público, nas narradas circunstâncias, poderia configurar fraude à Constituição.”
3) Mendes acrescenta, no entanto, a “riqueza probatória” das gravações das escutas telefônicas (viva Moro!) e transcreve as conversas na mesma ordem que este blog mostrou no post “Sequência dos grampos deixa claro que governo correu para salvar Lula da prisão“.
(Antes, um detalhe: o ministro demonstra, com base nas leis, que o fato de Dilma ter admitido a conversa com Lula em notas oficiais “torna irrelevante” para a decisão sobre o mandado de segurança impetrado no STF “qualquer debate acerca da validade das gravações”. Grato pela confissão, querida.)
a) Mendes transcreve a conversa em que o cientista político Alberto Carlos de Almeida recomenda fortemente a Lula que vire ministro para escapar do juiz Sérgio Moro (OUÇA AQUI);
b) Transcreve a conversa em que Rui Falcão propõe a Jaques Wagner a nomeação de Lula para impedir sua prisão e Wagner lhe garante que vai falar com Dilma (OUÇA AQUI);
c) Transcreve as duas conversas entre Dilma e Lula: uma em que Lula confessa estar assustado com a “República de Curitiba” e a outra em que Dilma lhe oferece o termo de posse.
Mendes analisa cada diálogo mostrando a escalada dos indícios que vão da sugestão alheia até se revelar, na última conversa, “o objetivo da Presidente da República de nomear Luiz Inácio Lula da Silva para impedir sua prisão”.
Este blog reproduz, então, esta conversa e o desmascaramento memorável da versão do governo.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=OpMUImgbLhI?feature=oembed&w=500&h=281%5D
“DILMA: Alô.
LILS: Alô.
DILMA: LULA, deixa eu te falar uma coisa.
LILS: Fala querida. “Ahn”
DILMA: Seguinte, eu tô mandando o “BESSIAS” junto com o PAPEL pra gente ter ele, e só usa em caso de necessidade, que é o TERMO DE POSSE, tá?!
LILS: “Uhum”. Tá bom, tá bom.
DILMA: Só isso, você espera aí que ele tá indo aí.
LILS: Tá bom, eu tô aqui, eu fico aguardando.
DILMA: Tá?!
LILS: Tá bom.
DILMA: Tchau.
LILS: Tchau, querida”.
A Presidente diz que enviará o termo de posse “para gente ter ele”, mas orienta: “só usa em caso de necessidade”.
Em suas manifestações sobre o diálogo, a Presidente sustentou que estava mandando uma versão do termo de posse. A justificativa é de que o novo ministro não saberia se poderia ir à cerimônia, marcada para a manhã do dia 17.3.
Assim, a Presidente teria mandado o emissário não para entregar o termo, mas para colher a assinatura do empossando, para que o documento ficasse arquivado na Presidência.
Transcrevo a nota oficial da Presidência nesse sentido:
“Finalmente, cabe esclarecer que no diálogo entre o ex-presidente Lula e a presidente Dilma a expressão “pra gente ter ele” significa “o governo ter o termo de posse”, assinado pelo presidente Lula, para em caso de sua ausência já podermos utilizá-lo na cerimônia de amanhã. Por isso, o verbo não é “usa” mas sim o governo usar o referido termo de posse”.
Essa explicação não corresponde ao que foi dito, nem é compatível com a legislação de regência.
A Presidente claramente orienta Luiz Inácio Lula da Silva quanto à utilização do documento: “só usa em caso de necessidade”. A tese de que a Presidência ficaria com o documento e só usaria se o empossando não fosse à cerimônia não se coaduna com o dito na conversa.
Tampouco a versão oficial é compatível com a legislação de regência do ato de posse.
A lei diz que a posse se dá “pela assinatura do respectivo termo”, no prazo de trinta dias “contados da publicação do ato de provimento” – Lei 8.112/89, art. 13, §1º. Em regra pessoal, a posse pode se dar mediante procuração específica – § 3º do mesmo artigo.
Parece indisputável que, no momento da conversa, Luiz Inácio Lula da Silva não poderia tomar posse, por duas razões. Primeiro, porque o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil estava ocupado por Jaques Wagner. Segundo, porque ainda não fora nomeado. A exoneração de Wagner e nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva aconteceram pela publicação de edição extraordinária do Diário Oficial da União, na noite daquele dia 16.3.
A versão oficial está atenta a essa impossibilidade. Não cogita de que a posse estaria ocorrendo no momento da entrega do termo. O documento seria uma reserva, para ser assinada pela Presidente da República, e portanto tornar-se um documento público, no dia seguinte, 17.3, na qual ocorreria a cerimônia.
Ocorre que a legislação de regência veda essa hipótese. Se Luiz Inácio Lula da Silva não estivesse presente na cerimônia de posse, duas consequências poderiam ocorrer: ou ele não tomaria posse – podendo fazê-lo a qualquer momento, no intervalo de trinta dias contados da publicação da nomeação – ou tomaria posse por procuração – caso enviasse mandatário com poderes específicos.
Em nenhuma hipótese, a posse poderia ocorrer pela aposição, pela Presidente, de sua assinatura, em termo adredemente assinado pelo nomeado.
A despeito disso, a Presidente da República emitiu nota, acompanhada de documento intitulado “termo de posse”, assinado pela autoridade empossada, mas não pela autoridade que dá a posse, sem data preenchida. O mesmo documento foi exibido na cerimônia de posse, como sendo o objeto da conversa em questão. O texto do documento dá conta de que a suposta posse teria ocorrido “perante a Excelentíssima Senhora Presidenta da República”.
Se Luiz Inácio Lula da Silva não houvesse comparecido à cerimônia, isso seria uma clara contrafação. Se havia dúvida quanto à possibilidade de comparecimento pessoal, bastaria deixar procuração assinada com poderes para o ato.
Uma explicação plausível para o documento objeto da conversa é que foi produzido um termo de posse, assinado de forma antecipada pela Presidente da República, com a finalidade de comprovar fato não verídico – que Luiz Inácio Lula da Silva já ocupava o cargo de Ministro de Estado. O objetivo da falsidade é claro: impedir o cumprimento de ordem de prisão de juiz de primeira instância. Uma espécie de salvo conduto emitida pela Presidente da República.
Ou seja, a conduta demonstra não apenas os elementos objetivos do desvio de finalidade, mas também a intenção de fraudar.
Assim, é relevante o fundamento da impetração.
É urgente tutelar o interesse defendido.
Como mencionado, há investigações em andamento, para apuração de crimes graves, que podem ser tumultuadas pelo ato questionado. Há, inclusive, pedido de prisão preventiva e de admissibilidade de ação penal, que necessitam de definição de foro para prosseguimento.
Por fim, registro que os presentes mandados de segurança coletivos impetrados no Supremo Tribunal Federal não têm o condão de suspender o trâmite de ações populares já em curso em outras instâncias ou mesmo de obstar a propositura de nova demanda. Tratando-se de feitos de competência de instâncias distintas, impossível sua reunião. Tampouco a presente ação impede a análise de tutela de urgência em ações populares, conforme dispõe o art. 1º, § 2º, da Lei 8.437/92.
Ante o exposto, defiro a medida liminar, para suspender a eficácia da nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil, determinando a manutenção da competência da justiça em Primeira Instância dos procedimentos criminais em seu desfavor.
Comunique-se à 13ª Vara Federal de Curitiba.
Notifique-se a autoridade impetrada.
Dê-se ciência ao Advogado-Geral da União.
Inclua-se Luiz Inácio Lula da Silva na autuação.
Cite-se como litisconsorte passivo necessário.
Apensem-se os autos dos Mandados de Segurança 34.070 e 34.071, para tramitação e julgamento conjunto.
Com as respostas, dê-se vista ao Procurador-Geral da República.
Publique-se. Int.
Brasília, 18 de março de 2.016.
Ministro GILMAR MENDES
Relator
Documento assinado digitalmente
* PS: Cardozo disse que vai recorrer porque “a decisão fere a jurisprudência do STF para um mandado de segurança”.
Repito:
Felipe Moura Brasil ⎯ https://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil