Anos atrás, o então ditador Hugo Chávez decidiu envolver as estruturas do Estado venezuelano no tráfico de drogas como forma de ajudar as Farc e de combater os Estados Unidos em uma “guerra assimétrica” incentivando o vício em solo americano. Seu sucessor, Nicolás Maduro, também teria participado do negócio do Cartel dos Sóis, ainda que a gestão estivesse nas mãos do presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, o chefão Diosdado Cabello.
Coincidem nessas revelações os depoimentos do juiz Eladio Aponte, que fugiu da Venezuela em 2012, e do ex-chefe de segurança de Chávez e Cabello, o capitão de corveta Leamsy Salazar, que desertou em dezembro e agora é testemunha protegida da Agência Antidroga dos EUA (DEA). As informações são do jornal ABC da Espanha, que publicou nesta quarta-feira a segunda matéria sobre as denúncias de Salazar, repercutidas em primeira mão na grande mídia neste blog – aqui, aqui e aqui.
A deserção planejada e bem-sucedida do militar de mais alto posto a recorrer a essa medida extrema é uma amostra de como a Justiça da ditadura venezuelana não investiga os crimes da cúpula do governo, como a utilização da petroleira PDVSA para lavagem de dinheiro.
Em suas revelações, Salazar também liga ao cartel o governador do estado de Aragua e ex-ministro do Interior, Tarek el Aissami, e o chefe da agência fiscal e aduaneira (SENIAT) e ministro da Indústria, José David Cabello, que é irmão do presidente Assembleia Nacional. Em 2010, o narcotraficante Walid Makled já havia dito que Aissami lhe fazia favores.
A desculpa da “lua-de-mel”
Leamsy Salazar (cujo nome vem de escrever Ismael ao contrário) chegou aos EUA na segunda-feira com procedência de Madri. Após ter contactado a DEA, ele pediu em dezembro a permissão dos patrões venezuelanos para se casar e sair de lua de mel, e então se ausentou do país. Enquanto esperava autorização para entrar nos EUA, esteve em um par de países, sendo o mais recente a Espanha, de onde voou para Washington com sua esposa e alguns parentes. Nascido em 24 de maio de 1974 e graduado na Escola Naval em 1998, Salazar tem hoje 40 anos e dois filhos de um casamento anterior, os quais permanecem na Venezuela, segundo o jornal, o que me parece um risco, dado o ódio que suas graves denúncias já despertam no governo.
De “grande soldado” a “traidor”
Salazar teve uma vocação militar precoce, segundo o ABC. Quando Chávez tomou posse como presidente no início de 1999, ele quis entrar para a guarda de honra presidencial com os melhores jovens oficiais de cada classe. Os primeiros das duas últimas classes foram convocados e Salazar acabou selecionado. Ele cuidou por quase dez anos da segurança do presidente e também o serviu como assistente pessoal.
O vídeo abaixo é de um programa “Alô, presidente” no qual Chávez elogiou Salazar, apontando o então recente guarda-costas em uma foto na qual ele balança a bandeira nacional no terraço do palácio presidencial em 12 de abril de 2002, quando Chávez recuperou o poder depois de três dias que o havia perdido. Assista. Continuo em seguida.
Pois é. O homem que era, nas palavras de Chávez, um “humilde grande soldado da infantaria marinha”, um dos “soldados muito dignos” da Venezuela aos quais o povo devia “reconhecimento”, agora é tido como o inimigo público número 1 do governo em Caracas.
Os aliados do PT no Foro de São Paulo não suportam a ideia de que a colaboração de Salazar com as autoridades americanas esteja permitindo aos EUA uma compreensão mais completa da estrutura do Cartel dos Sóis, como é chamada a rede de narcotráfico paraestatal da Venezuela, responsável pelo encaminhamento de parte da droga que chega aos Estados Unidos.
O alto escalão do narcotráfico
Faz tempo que as investigações da DEA vêm apontando para vários líderes, a maioria de origem militar, como membros proeminentes do cartel. Seja por sua ligação patente com o narcotráfico, seja por suas conexões com a narcoguerrilha colombiana das Farc, Washington já tinha denunciado publicamente três ministros da Defesa do chavismo – Henry Rangel Silva, Carlos Marta Figueroa e Ramon Carrizález -, assim como Ramon Rodriguez Chacin, que foi titular de Justiça e Interior em duas ocasiões. Hoje, esses dirigentes são governadores dos estados de Trujillo, Nueva Esparta, Apure e Cojedes, respectivamente.
Até agora, no entanto, só houve uma acusação formal dos Estados Unidos contra uma figura do alto escalão venezuelano por narcotráfico. Foi aquela contra o general e chefe da inteligência militar entre 2004 e 2009, Hugo Carvajal, preso em julho de 2014 pela polícia de Aruba a pedido dos EUA, tendo os procuradores federais lhe atribuído um papel de coordenação do Cartel dos Sóis. Na verdade foram duas acusações, do Ministério Público Federal do Distrito Sul de Nova York e do de Miami – e é possível que haja mais processos semelhantes contra outros líderes, em caráter secreto. A ligação de Carvajal com as Farc apareceu em documentos e em um computador apreendidos pelo exército colombiano durante uma operação militar contra a guerrilha em 2007.
[Vale lembrar a matéria da revista Cambio de 2008 – escrita também com base no material encontrado nos computadores da narcoguerilha -, segundo a qual “a expansão das Farc na América Latina não incluiu apenas funcionários dos governos de Venezuela e Equador, mas também comprometeu importantes dirigentes, políticos e altos membros do PT”, entre eles o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, o ex-ministro de Ciência e Tecnologia Roberto Amaral, a então deputada distrital Erika Kokay (PT) e o então chefe de Gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho. Também foram mencionados nos e-mails Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia, Perly Cipriano, Paulo Vannuchi e Selvino Heck. Mais informações – aqui.]
Nos EUA, o secretário ajunto de Estado para Assuntos Internacionais de Narcóticos e Segurança, William Brownfield, afirmou que “há mais de 10 anos tem surgido evidências de que certos indivíduos no seio do governo da Venezuela são corruptos” e que “o artigo” de terça-feira da ABC, que aponta o homem forte de Chávez como o principal operador do narcotráfico paraestatal, “é consistente com esse histórico; é, na minha perspectiva, mais um fragmento de prova em uma história de mais de dez anos sobre como as organizações narcotraficantes encontraram a capacidade de se estabelecer na Venezuela”.
O capitão venezuelano aposentado Bernardo Jurado, que conheceu Salazar, disse no programa ‘La Noche’ da NTN24 que Chávez (como Lula) “estava ciente de tudo o que acontecia”. Sabia de tudo, como gostamos de dizer por aqui. Segundo Jurado, “41% da cocaína produzida na Colômbia passa pela Venezuela com destino a mercados nos EUA, na Europa e na Ásia.”
A reação de Cabello, a Dilma venezuelana
Já Cabello teve aquela típica reação da esquerda revolucionária às denúncias de seus crimes conhecida como “mate o mensageiro!”. Assim como a presidente Dilma Rousseff disse em rede nacional que processaria a revista VEJA por simplesmente divulgar o conteúdo do depoimento em que o doleiro Alberto Youssef revelava à Polícia Federal que ela e Lula sabiam de tudo sobre o petrolão, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela disse no programa ‘Com el Mazo Dando’ transmitido pela rede estatal VTV que processará o jornal ABC da Espanha simplesmente por trazer a público o depoimento de Salazar ao DEA.
Não satisfeito, disse que será “implacável”, que “ninguém” o deterá, e que processará também os jornais El Nacional e Tal Cual, assim como o portal La Patilla, por terem repercutido a notícia do ABC. Se Cabello quiser me processar também, eu aviso: será uma honra. Eis as suas frases, ao melhor estilo petista, seguida da reação de Maduro:
1) “Vamos abrir um processo, se a justiça espanhola responde ou não responde é problema da justiça espanhola, mas eu sou forçado a me defender.”
2) “Claro que eles têm de provar, porque eles não podem dizer assim que eu sou narcotraficante”…
3) “Eu me reservo as ações judiciais contra os donos de mídia daqui (…) Todas as diretorias dos meios de comunicação que atuaram contra a minha pessoa acusando-me de traficante de drogas terão de prová-lo. Será muito complicado, muito difícil isso, senhores de El Nacional, La Patilla, senhores do Tal Cual.”
4) “Que a DEA se fixe em mim é uma honra; que pessoas como [o ex-secretário de Estado dos EUA para América Latina] Roger Noriega sejam aqueles que estão por trás disso, é uma honra para mim; e, do ponto de vista revolucionário (…), me indica que estou indo no caminho certo”, com a “consciência tranquila”.
5) “Este sujeito [Salazar] esteve com o comandante (Hugo) Chávez e, quando morre o comandante, eu decido (…) levá-lo para trabalhar comigo”. “Como no mês de junho” Salazar “começou a me baixar os olhos” e “se fazia de desentendido”, Cabello solicitou à então ministra da Defesa, Carmen Melendez, sua mudança e que o mandasse para estudar “para que se recompusesse”. “Não o vejo com bons olhos.”
6) Cabello assegurou não ter “nenhuma dúvida” de que Salazar foi “infiltrado” na equipe de segurança de Chávez “por muitos anos”.
Já o atual ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, denunciou na terça-feira a existência de uma “campanha”, que rotulou como “bestial” e “vulgar” por parte da – adivinhe! – “ultra-direita internacional” contra Cabello, a quem demonstrou o seu apoio.
Ah, como são parecidos os petistas e chavistas…
O deputado de oposição Ismael García fez melhor: falou que Cabello deveria pedir “uma investigação das acusações contra ele próprio”. Não seria de fato uma Graça? Sim: uma Graça Foster.
PS: William Cárdenas, advogado e porta-voz da Plataforma Democrática de Venezuelanos en Madri, resume bem a ditadura chavista.
Felipe Moura Brasil – https://www.veja.com/felipemourabrasil
Siga no Facebook e no Twitter.