Ao longo de três séculos, um peculiar exército africano deixou militares europeus atônitos. “O grupo possui coragem admirável e muita audácia”, registrou, em 1890, um soldado francês invasor do Reino de Daomé, atual Benin, na costa ocidental do continente. Mais do que a habilidade no campo de batalha, o batalhão local surpreendia os inimigos por ser totalmente composto de mulheres. Os colonizadores as chamavam de “Amazonas de Daomé”, numa referência às míticas guerreiras gregas. Mas o grupo tinha nome próprio: agojie — termo ligado à fidelidade dessas mulheres ao rei. Na história escrita, elas foram mencionadas pela primeira vez em 1725, quase um século depois de sua formação. Agora, as agojies desembarcam em Hollywood com um retrato inédito e luxuoso.
Protagonizado e produzido por Viola Davis, o épico A Mulher Rei (The Woman King, Canadá/Estados Unidos, 2022), já em cartaz, destrincha a cultura e o treinamento árduo desse regimento sem precedentes. O resgate realista ganhou impulso graças ao sucesso de Pantera Negra, filme de 2018 que se inspirou nas agojies para a criação das Dora Milaje, implacáveis guerreiras de Wakanda. A Mulher Rei, porém, segue um movimento mais amplo em voga na literatura e no cinema, no qual descendentes de africanos escravizados vêm tomando de volta para si a narrativa sobre os antepassados. A investigação expõe um outro lado da história — aquele que não foi “escrito pelos vencedores”, como diz o chavão. Esse caminho reverso do colonialismo ilumina parte do passado ofuscado da África. É uma jornada de alto custo emocional, que fala do prazer de se conectar à ancestralidade sufocada e da cicatrização das feridas da opressão, mas também não esconde as atrocidades e a participação de camadas poderosas da África no comércio de escravos.
Numa posição geográfica privilegiada, Daomé abrigava um importante porto de tráfico humano, num acordo lucrativo com os europeus. Muitos cativos eram vítimas das agojies — que também recrutavam mulheres capturadas: todas eram proibidas de ter relações sexuais e filhos. “Elas transformaram sua situação adversa num meio de viver que lhes garantiu respeito e, mais tarde, virou um legado”, disse Viola a VEJA.
Jinga de Angola: A rainha guerreira da África
O filme da diretora americana Gina Prince-Bythewood não se desvia das polêmicas, mas opta por fazer de A Mulher Rei um manifesto sentimental sobre a força feminina e o poder de suas relações. Viola interpreta a general Nanisca, braço direito do soberano (vivido por John Boyega). Ao mostrar o próspero Reino de Daomé, com uma organização política e militar estabelecida, e seus avanços na agricultura e no comércio, o longa refuta o estereótipo de que a África era um antro tribal primitivo a ser salvo pelo cristianismo e pela civilização.
A óptica eurocêntrica ainda condenava a ordem social dos africanos, que permitiam mulheres em posições de poder — e as agojies não eram as únicas. Outras personalidades femininas deram dor de cabeça aos colonizadores. É o caso da rainha guerreira Jinga da Angola (1583-1663). Difamada pelos portugueses, que a descreveram como petulante, canibal, selvagem e promíscua, Jinga governou por quatro décadas, entre 1624 e 1663, os reinos pré-coloniais de Matamba e Ndongo — hoje Angola. Em um episódio simbólico de sua “petulância”, Jinga se indignou durante uma negociação com um representante da Coroa portuguesa, que a recebeu sentado em uma cadeira, reservando a ela apenas um tapete no chão. A soberana chamou uma de suas escravas, que se agachou de quatro e lhe serviu de banco. Estrategista, aliou-se a tribos variadas e até aos holandeses. Chegou a flertar com Roma, convertendo-se ao catolicismo, em manobras desenhadas com o intuito incansável de desafiar os portugueses — que nunca a capturaram.
A mesma empáfia demonstrou Yaa Asantewaa (1840-1921), rainha-mãe do Império Ashanti, atual Gana, que liderou seu povo contra o Exército britânico. Curiosamente, um assento foi o estopim do embate. Um militar inglês exigiu se sentar num trono sagrado dos ashantis — prova de que a petulância era, na verdade, uma especialidade europeia. A Mulher Rei, enfim, vinga essas poderosas africanas.
ENTREVISTA: “Aprendi muito”
Em visita ao Brasil, Viola Davis, 57 anos, falou a VEJA sobre A Mulher Rei e a preparação física para interpretar uma guerreira agojie.
Na pesquisa para o filme, o que mais a surpreendeu sobre a história das agojies? Foi chocante saber que essas mulheres eram rejeitadas. Tinham sido jogadas fora — e isso foi decidido por outros quando tinham entre 8 e 14 anos. Elas não eram livres para ter filhos, nem relações sexuais.
E como viraram o jogo? Elas transformaram sua situação adversa num meio de viver que lhes garantiu respeito e, mais tarde, virou um legado. Aprendi muito sobre o espírito guerreiro das mulheres.
A pesquisa a colocou em contato com outras figuras históricas femininas da África? Nosso foco era a cultura agojie, mas claro que conheço Jinga da Angola, entre outras. Meu mergulho foi muito intenso. Estudei sobre a fé em vodus, li documentos sobre o treinamento militar delas — fora minha preparação física, que levou meses. Mas descobrir a existência das agojies foi meu maior aprendizado.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808
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