Numa conferência da influente revista The New Yorker, Lydia Tár é questionada sobre a função do maestro diante da orquestra. O movimento da batuta e das mãos, cutuca o entrevistador, não seria uma mera marcação de compassos substituível por aquele aparelhinho chamado de metrônomo? Ela discorda, e pontifica: reger é controlar o tempo — não há poder maior do que ditar quando uma sinfonia começa e termina. Por boa parte das duas horas e meia do intrigante Tár, já em cartaz no país, sua protagonista encarna com voracidade esse papel de senhora do tempo. Credenciais não lhe faltam: após reger grandes orquestras americanas, ela se tornou titular da mítica Filarmônica de Berlim; é respeitada por estudos musicais de povos indígenas e pela formação de regentes femininas; pertence, por fim, ao seletíssimo clube das personalidades EGOT — aquelas que somam os quatro maiores prêmios do showbiz americano: Emmy, Grammy, Oscar e Tony.
Vivida com energia mesmerizante pela australiana Cate Blanchett, Lydia Tár não é uma pessoa de verdade, mas resume certa categoria que o mundo conhece bem: os humanos que chegam ao topo e, de tão inflados, tornam-se intimidadores, ditatoriais — ou coisas piores. É um posto, claro, quase sempre masculino. Mas calha de Tár ser a primeira mulher a mandar na orquestra que já foi regida por machos alfa como o austríaco Herbert von Karajan — e pode se equiparar aos antecessores com feitos como uma gravação da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler, única das nove completas criadas pelo compositor que ainda não registrou com o conjunto berlinense. Do alto de seus louros, Tár jura que ela nunca teve problemas com o machismo: “No que diz respeito ao preconceito de gênero, não tenho do que reclamar”.
Ocorre que, ao contrário do mundo em que viveu Karajan, as questões de gênero são um ponto sensível na realidade de hoje — inclusive na Filarmônica de Berlim, onde tudo agora é decidido democraticamente pelos músicos. Daí vem a provocação que faz de Tár — primeiro trabalho do diretor americano Todd Field desde o memorável Pecados Íntimos, lá se vão dezesseis anos — o filme mais divisivo do Oscar 2023, com seis indicações (veja abaixo). A regente é lésbica assumida e manipuladora contumaz — a ponto de usar o casamento com a spalla Sharon (Nina Hoss) como trampolim para chegar aonde chegou. Tár é, acima de tudo, uma predadora sexual que transforma as vítimas em zumbis à sua volta, da assistente Francesca (Noémie Merlant), que se exaspera com uma promoção que nunca vem, à desesperada ex-pupila Krista, caída em desgraça por alguma razão obscura. A jovem violoncelista russa Olga (Sophie Kauer) é seu novo objeto de desejo, e a regente dá bandeira ao escolher uma peça em que ela brilha, o Concerto para Violoncelo do inglês Edward Elgar (1857-1934), para completar o menu da gravação de Mahler. Mas Olga surge bem no ponto de inflexão em que Tár vai desabar do céu ao inferno.
Na contramão das produções no espírito do #MeToo, Tár introduz elementos incômodos ao tratar do assédio. Obviamente, colocar uma mulher como abusadora é a maior causa de furor. A maestrina americana Marin Alsop se disse ofendida e acusou o filme de sabotar a luta feminista. Na direção oposta, há quem denuncie o longa pela suposta defesa da cultura do cancelamento, já que a queda de Tár passa pela propagação de vídeos virais e campanhas nas redes sociais.
O nível de desorientação nas críticas só ilumina a maior virtude de Tár: a de torpedear com sutileza certezas preestabelecidas. Field criou um fascinante quebra-cabeça em que muito do que acontece não é dito ou mostrado — e a trama ganha uma riquíssima segunda vida na imaginação do espectador e na internet. Fica no ar a verdadeira natureza da relação da regente e suas assistentes. Ao se ligar os pontos, contudo, os pecados de Tár surgem cristalinos e se adivinha sua via-crúcis pública.
O diretor cria, sobretudo, uma desafiadora celebração da música clássica. As referências (leia abaixo) vão do cenário à estrutura do filme. A estranha opção de iniciar a narrativa pelos créditos finais é um modo de lembrar que, assim como maestros, cineastas exercem um poder avassalador sobre centenas de anônimos. Mas é também uma alusão à Quinta Sinfonia de Mahler: o compositor de origem checa, afinal, abre sua obra singular de forma igualmente anticlimática, com uma marcha fúnebre.
Beethoven: as muitas faces de um gênio
Se Field é um mestre das nuances, a oscarizável Cate Blanchett é quem torna Lydia Tár assustadoramente humana. A atriz estudou regência e piano para filmar, e teve um choque quando Field avisou que começariam pelas cenas de concerto com uma orquestra alemã de verdade. Decisão sábia: bastam suas expressões no púlpito para captar tudo sobre Tár. A princípio inquebrantável como a arquitetura brutalista da Berlim que a cerca, ela aos poucos deixa entrever fissuras. Enquanto se desdobra entre a tentativa de se defender e os preparativos da sinfonia de Mahler, Tár encara seu maior fantasma: na madrugada, é assombrada por seu metrônomo funcionando desgovernado dentro de um armário. É o tempo avisando que lhe escapou das mãos.
DESAFIO MUSICAL
Os quatro sujeitos (nada) ocultos que são a chave para entender a trama de Tár
Gustav Mahler
Pano de fundo do filme, a singular Quinta Sinfonia de Mahler (1860-1911) resume o espírito do compositor de origem checa: a meio caminho entre a tradição romântica e a subversão modernista, ela introduz dubiedade (e mistério) na miríade de sentimentos que a música consegue provocar
Jacqueline Du Pré
Virtuose do violoncelo, a inglesa (1945-1987) teve destino trágico: saiu de cena no auge em razão de uma esclerose múltipla — que a levaria à morte catorze anos depois. Sua célebre versão do Concerto para Violoncelo, de Edward Elgar (1857-1934), tem lugar de realce no filme
Herbert Von Karajan
O austríaco que regeu a Filarmônica de Berlim como ditador por 33 anos inspira a abusiva personagem de Cate Blanchett. Ex-membro do Partido Nazista, Karajan (1908-1989) era invejado pela ex-premiê inglesa e amiga Margaret Thatcher por razão singela: ninguém ousava desobedecê-lo
Leonard Bernstein
Mentor da protagonista de Tár, o maestro (1918-1990) rompeu a fronteira entre clássico e popular — são dele composições de musicais como West Side Story. Ao conduzir o Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler no funeral do político americano Robert Kennedy, em 1968, tornou a peça inescapável
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826
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