Assine VEJA por R$2,00/semana
Em Cartaz Por Raquel Carneiro Do cinema ao streaming, um blog com estreias, notícias e dicas de filmes que valem o ingresso – e alertas sobre os que não valem nem uma pipoca
Continua após publicidade

‘O Túnel dos Pombos’: as confissões de John Le Carré, espião que virou pop

Novo documentário acompanha a surpreendente vida do escritor que narrou os absurdos da Guerra Fria e suas consequências

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 22 out 2023, 08h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Mestre do romance de espionagem, o inglês John le Carré — pseudônimo de David Cornwell — foi um caso célebre de escritor com conhecimento de causa. No início da Guerra Fria, e antes de se tornar um autor mundialmente conhecido, ele foi espião do MI5 e do MI6, agências do serviço secreto britânico. Nas experiências que viveu no ofício, as consequências da mentira nas relações humanas o marcaram profundamente — seja na pele do impostor ou de quem é traído. No início dos anos 1950, na caça às bruxas contra comunistas, ele se infiltrou entre estudantes de Oxford e dedurou os “amigos” que flertavam com o marxismo. Anos mais tarde, sentiu o baque da traição ao descobrir que um colega do MI6 era, na verdade, um agente duplo soviético — revelação que comprometeu o disfarce de diplomata que lhe dava acesso à Alemanha Oriental. Fazendo do limão uma limonada, Le Carré usou o caso na criação de uma de suas obras-primas, o clássico O Espião que Sabia Demais (1974). Quando questionado sobre as razões que levaram pessoas à espionagem na época, curiosamente, o autor refutou a defesa de ideologias como motivação primordial: no fundo, ele e seus colegas (e inimigos) eram movidos pelo gosto de enganar. “Há um contentamento em saber algo que todos ao seu redor não sabem. De fingir ser o que não é”, disse ele em entrevista ao diretor Errol Morris no ótimo documentário O Túnel de Pombos (The Pi­geon Tunnel; Estados Unidos; 2023), que acaba de chegar à Apple TV+.

    Publicidade
    ALTER EGO - Pierce Brosnan (à dir.) em O Alfaiate do Panamá: agente sedutor
    ALTER EGO - Pierce Brosnan (à dir.) em O Alfaiate do Panamá: agente sedutor (Columbia Pictures/.)

    Ao mergulhar nas entrelinhas do livro de mesmo nome — uma autobiografia lançada em 2016 —, o filme se tornou um memorial revelador. Rodado em 2019 (David Cornwell morreu em 2020, aos 89 anos), o documentário registra a última e mais honesta entrevista do autor. Ilustra a conversa entre os dois com fotos do passado, cenas de filmes e séries adaptadas dos livros, além de sequências encenadas por atores. “A vida dele foi puro caos”, disse Morris a VEJA.

    Publicidade

    O espião que sabia demais

    Discreto, Le Carré aceitou se abrir com o cineasta por admirar seu trabalho em Sob a Névoa da Guerra (2003), documentário vencedor do Oscar guiado pelo depoimento do ex-secretário de Defesa americano Robert McNamara (1916-2009), peça relevante no xadrez da Guerra Fria — cenário de boa parte da obra do ex-espião. “Para ele, a história humana era um emaranhado de fatos absurdos e sem sentido”, afirmou Morris.

    Publicidade
    TRAIÇÃO - Cena de O Espião que Sabia Demais: história inspirada na vida real
    TRAIÇÃO - Cena de O Espião que Sabia Demais: história inspirada na vida real (Jack English/Focus Features/.)

    A visão se impõe no episódio que dá título ao filme. Na infância, Le Carré, ops, David Cornwell ficou hipnotizado por um estranho hobby de amigos de seu pai: armados, eles mantinham pombos em uma gaiola e os soltavam em um túnel — o qual desembocava em uma área externa onde os homens aguardavam para atirar nas aves. Em vez de fugir rumo à liberdade, as que sobreviviam voltavam para suas gaiolas, até serem levadas novamente ao túnel, repetindo o ciclo letal. “É uma parábola sobre a vida humana”, sugere Morris.

    Complete Tales and Poems of Edgar Allan Poe

    Publicidade

    A história tem notável correspondência com o cenário no qual o autor nasceu — e de que nunca conseguiu sair. Abandonado pela mãe aos 5 anos, ele foi criado pelo pai, Ronnie Corn­well, golpista que envolvia os dois filhos em suas tramoias. A prole aprendeu a mentir desde cedo, enquanto transitava pela alta sociedade sem possuir, de fato, a fortuna que o pai afirmava ter. A complexa relação familiar serviu como base para o excelente livro Um Espião Perfeito (1986), sobre um agente duplo que escreve sobre o pai mentiroso, enquanto expõe a hipocrisia da elite inglesa entre as décadas de 20 e 70.

    NOVA ORDEM - O Jardineiro Fiel, dirigido por Fernando Meirelles: pós-Guerra Fria
    NOVA ORDEM - O Jardineiro Fiel, dirigido por Fernando Meirelles: pós-Guerra Fria (Focus Features/.)

    O gerente noturno

    Publicidade
    Continua após a publicidade

    Inspiração pessoal nunca lhe faltou: em 26 romances, Le Carré expiou a raiva do pai ganancioso e da mãe ausente, expôs seu maior defeito (era um mulherengo) e externou a indignação diante da cegueira dos que conduziam seus impérios no conforto do gabinete. “É perigoso ver o mundo a partir de uma mesa de escritório”, disse. Se aplicada ao ato de escrever, a frase ganha tom profético: antes de ser espião, Le Carré já tinha a veia de escritor — mas foi depois da experiência que sua obra se tornou poderosa. Um exemplo é seu primeiro sucesso, O Espião que Saiu do Frio (1963), sobre como os serviços secretos tratam seus agentes como peões descartáveis. O tempo deixou sua obra mais afiada: após a queda do Muro de Berlim, a opressão dos países ricos sobre os pobres foi acentuada, aponta ele em O Alfaiate do Panamá (1996) e O Jardineiro Fiel (2001). O espião-escritor usou como ninguém sua dupla identidade.

    Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864

    Publicidade

    CLIQUE NAS IMAGENS ABAIXO PARA COMPRAR

    O espião que sabia demais
    O espião que sabia demais
    Complete Tales and Poems of Edgar Allan Poe
    Complete Tales and Poems of Edgar Allan Poe
    O gerente noturno
    O gerente noturno

    *A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.

    Publicidade
    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Domine o fato. Confie na fonte.

    10 grandes marcas em uma única assinatura digital

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo
    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 2,00/semana*

    ou
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 39,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.