‘O Túnel dos Pombos’: as confissões de John Le Carré, espião que virou pop
Novo documentário acompanha a surpreendente vida do escritor que narrou os absurdos da Guerra Fria e suas consequências
Mestre do romance de espionagem, o inglês John le Carré — pseudônimo de David Cornwell — foi um caso célebre de escritor com conhecimento de causa. No início da Guerra Fria, e antes de se tornar um autor mundialmente conhecido, ele foi espião do MI5 e do MI6, agências do serviço secreto britânico. Nas experiências que viveu no ofício, as consequências da mentira nas relações humanas o marcaram profundamente — seja na pele do impostor ou de quem é traído. No início dos anos 1950, na caça às bruxas contra comunistas, ele se infiltrou entre estudantes de Oxford e dedurou os “amigos” que flertavam com o marxismo. Anos mais tarde, sentiu o baque da traição ao descobrir que um colega do MI6 era, na verdade, um agente duplo soviético — revelação que comprometeu o disfarce de diplomata que lhe dava acesso à Alemanha Oriental. Fazendo do limão uma limonada, Le Carré usou o caso na criação de uma de suas obras-primas, o clássico O Espião que Sabia Demais (1974). Quando questionado sobre as razões que levaram pessoas à espionagem na época, curiosamente, o autor refutou a defesa de ideologias como motivação primordial: no fundo, ele e seus colegas (e inimigos) eram movidos pelo gosto de enganar. “Há um contentamento em saber algo que todos ao seu redor não sabem. De fingir ser o que não é”, disse ele em entrevista ao diretor Errol Morris no ótimo documentário O Túnel de Pombos (The Pigeon Tunnel; Estados Unidos; 2023), que acaba de chegar à Apple TV+.
Ao mergulhar nas entrelinhas do livro de mesmo nome — uma autobiografia lançada em 2016 —, o filme se tornou um memorial revelador. Rodado em 2019 (David Cornwell morreu em 2020, aos 89 anos), o documentário registra a última e mais honesta entrevista do autor. Ilustra a conversa entre os dois com fotos do passado, cenas de filmes e séries adaptadas dos livros, além de sequências encenadas por atores. “A vida dele foi puro caos”, disse Morris a VEJA.
Discreto, Le Carré aceitou se abrir com o cineasta por admirar seu trabalho em Sob a Névoa da Guerra (2003), documentário vencedor do Oscar guiado pelo depoimento do ex-secretário de Defesa americano Robert McNamara (1916-2009), peça relevante no xadrez da Guerra Fria — cenário de boa parte da obra do ex-espião. “Para ele, a história humana era um emaranhado de fatos absurdos e sem sentido”, afirmou Morris.
A visão se impõe no episódio que dá título ao filme. Na infância, Le Carré, ops, David Cornwell ficou hipnotizado por um estranho hobby de amigos de seu pai: armados, eles mantinham pombos em uma gaiola e os soltavam em um túnel — o qual desembocava em uma área externa onde os homens aguardavam para atirar nas aves. Em vez de fugir rumo à liberdade, as que sobreviviam voltavam para suas gaiolas, até serem levadas novamente ao túnel, repetindo o ciclo letal. “É uma parábola sobre a vida humana”, sugere Morris.
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A história tem notável correspondência com o cenário no qual o autor nasceu — e de que nunca conseguiu sair. Abandonado pela mãe aos 5 anos, ele foi criado pelo pai, Ronnie Cornwell, golpista que envolvia os dois filhos em suas tramoias. A prole aprendeu a mentir desde cedo, enquanto transitava pela alta sociedade sem possuir, de fato, a fortuna que o pai afirmava ter. A complexa relação familiar serviu como base para o excelente livro Um Espião Perfeito (1986), sobre um agente duplo que escreve sobre o pai mentiroso, enquanto expõe a hipocrisia da elite inglesa entre as décadas de 20 e 70.
Inspiração pessoal nunca lhe faltou: em 26 romances, Le Carré expiou a raiva do pai ganancioso e da mãe ausente, expôs seu maior defeito (era um mulherengo) e externou a indignação diante da cegueira dos que conduziam seus impérios no conforto do gabinete. “É perigoso ver o mundo a partir de uma mesa de escritório”, disse. Se aplicada ao ato de escrever, a frase ganha tom profético: antes de ser espião, Le Carré já tinha a veia de escritor — mas foi depois da experiência que sua obra se tornou poderosa. Um exemplo é seu primeiro sucesso, O Espião que Saiu do Frio (1963), sobre como os serviços secretos tratam seus agentes como peões descartáveis. O tempo deixou sua obra mais afiada: após a queda do Muro de Berlim, a opressão dos países ricos sobre os pobres foi acentuada, aponta ele em O Alfaiate do Panamá (1996) e O Jardineiro Fiel (2001). O espião-escritor usou como ninguém sua dupla identidade.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864
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