Jantar no exclusivíssimo restaurante do chef Julian Slowik (Ralph Fiennes) é para poucos — bem poucos. Localizado em uma ilha remota, habitada apenas pelo excêntrico Slowik e por seus funcionários, o estabelecimento recebe só doze clientes por refeição, e cada um deles deve pagar a bagatela de 1 250 dólares (em torno de 6 500 reais). As porções servidas são ínfimas — mas a narrativa conceitual que as envolve é farta. O couvert chega à mesa com acompanhamentos microscópicos. E sem pão: feito de água e farinha, o alimento é considerado pelo chef o “mais pobre que existe” — logo, acessível a todos e indigno.
A entrada risível leva Margot (uma ótima Anya Taylor-Joy) a desconfiar da teatralidade exagerada do chef. Protagonista do filme O Menu (The Menu, Estados Unidos, 2022), em cartaz nos cinemas, Margot é a única cliente que não é rica, nem deslumbrada. Ela está ali a convite de Tyler (Nicholas Hoult), um rapaz esnobe que acredita piamente que tudo é aceitável na arte da alta gastronomia — crença que será posta em xeque ao longo do filme. Confinados na ilha, sem acesso ao continente nem a sinal de celular, todos verão o jantar caríssimo se transformar em uma espécie de Jogos Vorazes sangrento dividido entre dois times: os que servem e os que são servidos — sendo que o primeiro grupo tem a vantagem de ser deveras habilidoso com facas.
Assim como o fatiar de uma cebola, as camadas do filme são abundantes — e elas são servidas com sabores distintos, do humor satírico ao thriller de ação. É no desprezo que paira entre os dois lados dessa divisão de classes — e na forma como cada uma delas se revela unida (ou não) — que o roteiro se desenrola de forma hipnótica.
O diretor inglês Mark Mylod soma o filme a um currículo respeitável no quesito “cenas de alta voltagem ao redor de uma mesa”: é dele o episódio de Game of Thrones em que Olenna Tyrell, vivida por Diana Rigg, é obrigada a beber vinho com veneno para se matar; também foi Mylod quem dirigiu alguns dos mais emblemáticos momentos da série Succession, da HBO, muitos deles servindo um caldo de climão ao fim de jantares em família. “Compartilhar uma refeição é a interação mais primitiva que existe entre os seres humanos”, disse o diretor a VEJA. “No restaurante do filme, a comida já não alimenta, não dá prazer, não cria conexões entre as pessoas. Ela só representa status.”
Caneca Mágica Game Of Thrones Casas III
O trabalho em Succession, sobre uma família disputando o posto mais alto de um enorme conglomerado midiático, foi uma fagulha para a criação de O Menu. O mergulho no universo paralelo dos multibilionários levou Mylod e o colega roteirista Will Tracy a experiências inimagináveis — entre elas, uma quase idêntica à do filme. Em viagem à Noruega, Tracy foi convidado para visitar um restaurante chiquérrimo em uma ilha particular. Claustrofóbico, quando viu a embarcação que o levou até lá ir embora, ele só pensava em tudo o que poderia dar errado ao longo das quatro horas previstas para ficar ali com estranhos. Seu roteiro foi prontamente abraçado pelo produtor Adam McKay, que fez sucesso recentemente com a sátira ecológica Não Olhe para Cima, da Netflix.
Nas mesas ao redor de Margot e Tyler estão tipos representativos daqueles que, de alguma forma, foram corrompidos por privilégios — e irritaram o chef sociopata de alguma forma. São eles: um trio de amigos fanfarrões do mercado financeiro; um ator de Hollywood falido e sua assistente; críticos gastronômicos ácidos e de nariz empinado; e um casal de idosos classudos que já perdeu as contas de quantas vezes comeu ali. Ao perceber que Margot não se encaixa no grupo de clientes, o chef lhe dá uma chance de escolher de qual lado ela quer ficar. A resposta não é tão simples — e dizer mais que isso pode estragar a surpresa de quem for ao cinema. Pode-se dizer, porém, que poucos jantares são tão memoráveis quanto esse — isso, se sobrar alguém para se lembrar dele depois da sobremesa.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818
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