Da sacada de um enorme edifício, Caesar Catalina, interpretado por Adam Driver, observa a imensidão da cidade abaixo e grita: “Tempo, pare!”. Político, artista, arquiteto e físico quântico, ele almeja construir uma utopia particular — sendo assim, mandar no tempo se revela uma arma de manipulação preciosa. Catalina não é o único com ambições grandiosas no filme Megalópolis (Estados Unidos, 2024), nova e ousada aposta do diretor Francis Ford Coppola, exibido recentemente no Festival de Cannes — ainda sem data de estreia no Brasil. Nessa realidade futurista, tecnologias avançadas contrastam com a arquitetura e os modismos da Roma Antiga, mistura do ultrapassado e da inovação que vai além da estética para permear o roteiro. Ao longo de quase duas horas e meia, a produção, sobre poderosos que tentam impor aos demais sua visão de mundo, provoca, confunde, choca e oferece previsões nada otimistas para a humanidade. Ao fundo, cria paralelos entre os Estados Unidos de hoje e a república decadente que abriu espaço para o tirânico império romano no passado.
O Cinema ao Vivo e as Suas Técnicas – Francis Ford Coppola
Aos 85 anos, Coppola tem opiniões políticas contundentes — e sua obra é prova de que ele desconfia de qualquer um com muito poder. Possui também o vigor de um iniciante, ávido por trabalhar e por se aventurar criativamente. A combinação dessas duas facetas foi o combustível de Megalópolis. Orçado em 120 milhões de dólares, a extravagância cinematográfica foi rejeitada pelos grandes estúdios, que, apesar da assinatura de Coppola, optaram por investir em produções, por assim dizer, mais certeiras — como filmes rasteiros de super-heróis. O diretor, então, vendeu sua vinícola na Califórnia para bancar o longa do próprio bolso. “Dinheiro não importa”, disse o cineasta em Cannes — sem deixar de ressaltar que sua família ainda possui o suficiente para viver de forma confortável.
O poderoso chefão – Mario Puzo
Ícone incontestável do cinema, Coppola fez parte de uma geração estrelada que moldou Hollywood nos anos 1970: a trupe de amigos iniciantes ainda contava com Steven Spielberg, George Lucas e Martin Scorsese. Entre eles, Coppola foi o primeiro a ganhar prestígio graças ao monumental O Poderoso Chefão (1972). Na mesma década, o diretor se aventurou no que seria o trabalho mais difícil de sua carreira até ali: o longa de guerra Apocalypse Now (1979), ambientado no Vietnã. Os bastidores foram caóticos — com direito até a um infarto do ator Martin Sheen, que adiou gravações. Quando entrou em cartaz, causou polêmica e deixou críticos confusos: não se sabia então que o filme se tornaria, com o tempo, outra obra-prima aclamada do cineasta — nem que sua temática, sobre o imperialismo americano, se manteria atual por décadas a fio. Foi no set de Apocalypse Now que Coppola pensou no roteiro de Megalópolis pela primeira vez.
Ao longo desses quarenta anos de planejamento aconteceu de tudo no caminho do filme: do 11 de Setembro, que cancelou a produção, afinal, não pegaria bem um filme criticando os Estados Unidos, até um recente embate de gerações que agitou os bastidores. Dias antes da estreia no evento francês, o longa foi tema de uma reportagem no jornal inglês The Guardian, que listou atitudes controversas de Coppola, desde gastar muito sem planejamento, passando por longos sumiços do diretor, até a preparação de uma cena de festa na qual ele dançou e deu beijos nas bochechas de figurantes. O climão, contudo, ficou só na internet: na sessão de gala da estreia e na coletiva de imprensa no dia seguinte, Coppola foi aplaudido e elogiado — até por quem nem gostou tanto assim de seu novo filme. De fato, Megalópolis não é fácil de digerir.
A conjuração de Catilina – Salústio
Como sugere o nome do protagonista de Adam Driver, Caesar Catalina é inspirado no militar romano Lucius Sergius Catilina (108 a.C.-62 a.C.), que conspirou contra a república de Roma. Coppola aponta que os Estados Unidos de hoje correm o mesmo perigo. “O que está acontecendo em nossa república, nossa democracia, é exatamente como ocorreu com Roma”, disse o diretor, que ainda lamentou o crescimento da extrema direita e de “tradições fascistas” enquanto criticava Donald Trump. Sobre a possibilidade de Megalópolis ser seu último filme, ele garante não se preocupar com a idade avançada e a chegada da morte: “Não carrego arrependimentos. Vi minha filha ganhar um Oscar, produzi vinho, fiz meus filmes. Quando eu morrer, nem vou perceber”. É um diretor em poder de seu tempo.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894