Os adjetivos usados para descrever Leonard Bernstein (1918-1990) são variados e hiperbólicos. Extravagante, complexo e intenso são algumas tentativas de definir a essência do regente, compositor e pianista americano que revolucionou o modo de fazer música clássica — e ainda ajudou a popularizar o gênero fora das elitistas salas de concertos. Classificá-lo, de fato, é uma tarefa inglória: Bernstein era versátil e livre de amarras, no trabalho e na vida pessoal. Quem chegou mais perto de entendê-lo foi sua filha mais velha, Jamie — fugindo de adjetivos, ela resumiu o complexo perfil do pai a uma simples idiossincrasia: “Ele odiava ficar sozinho”. Logo, o artista preferia trabalhar no teatro, em parceria com amigos, ou dar aulas, desafiando as imagens do regente inacessível e do compositor solitário. Na incansável busca por companhia, Bernstein experimentou de tudo (e de todos), diversidade que se reflete em sua obra e no filme Maestro (Estados Unidos, 2023), em cartaz em cinemas selecionados e, a partir de quarta-feira 20, disponível na Netflix.
Diretor, roteirista e protagonista do longa, além de antigo fã do regente, Bradley Cooper sabia que havia muitos recortes possíveis para uma produção que honrasse o tamanho de seu biografado. A começar pelo óbvio: na função de maestro, Bernstein era um showman de primeira, que adicionava pitadas de rebeldia em peças de mestres clássicos — e o fazia com gestos largos e teatrais (e uma boa dose de suor). Foi também um compositor incomparável, transitando da sinfonia ao balé, até a ópera, o jazz e o teatro musical — é dele a trilha de Amor, Sublime Amor, sucesso da Broadway que conquistou o cinema. Foi apresentador de TV, ativista e educador. Era festeiro, usava drogas, e amou homens e mulheres. Cooper optou, quem diria, pelo caminho mais difícil: em vez de listar feitos, Maestro abraça a aversão do regente à solitude e coloca sob os holofotes sua agitada vida amorosa e social — pontuada, em segundo plano, pelos grandes momentos de sua carreira. Na trilha sonora ao fundo, sua música expõe o que não é dito, das aflições e desejos às dores do protagonista.
Famous Father Girl: A Memoir of Growing Up Bernstein
Bernstein foi casado com a atriz costarriquenha Felicia Montealegre (Carey Mulligan), relação de idas e vindas que durou mais de trinta anos, apesar das escapadas do regente com homens — a esposa sabia da bissexualidade do marido. A união resultou em três filhos: Jamie, hoje com 71 anos; Alexander, de 68; e Nina, de 61. O trio foi fundamental na defesa de Cooper quando uma polêmica vazia ameaçou a reputação do filme: para se parecer mais com Bernstein, o ator usou uma prótese de nariz — maquiagem apontada nas redes como jewface, termo pejorativo em inglês para atores que tentam se assemelhar a judeus. A família discordou da gritaria. “Leonard Bernstein tinha um belo e enorme nariz. Bradley usou maquiagem para aumentar a semelhança entre eles — e estamos de acordo com isso”, diz trecho do comunicado dos filhos.
O nariz é só uma ponta dos esforços despendidos por Cooper, que já figura entre os favoritos ao Oscar de melhor ator em 2024. Steven Spielberg iria dirigir o filme, mas passou a batuta ao colega após assistir a um primeiro corte de Nasce uma Estrela, longa com Lady Gaga que marcou a estreia do ator na direção, em 2018. Ao lado de Martin Scorsese, Spielberg produziu Maestro, enquanto tirava da gaveta outra homenagem a Bernstein, uma nova e belíssima adaptação de Amor, Sublime Amor (2021). Paralelamente, Cooper deu início à preparação, que consistiu em seis anos de pesquisa e aulas de regência. A dedicação fica explícita na cena de seis minutos em que o ator conduz, ao vivo, a Orquestra Sinfônica de Londres na Catedral de Ely, na Inglaterra, reproduzindo a memorável apresentação de Bernstein no local, em 1976. Cooper ainda se tornou presença constante nos ensaios da Filarmônica de Nova York, da qual Bernstein foi titular entre 1958 e 1969. A orquestra deu ao regente, em 1943, aos 25 anos de idade, a chance de conduzir um concerto no Carnegie Hall substituindo o maestro oficial, que ficara doente. A apresentação aclamada se deu no improviso, sem ensaio, nem partitura.
Filho de imigrantes judeus ucranianos, Leonard Bernstein nasceu em Lawrence, em Massachusetts, e se dedicou à música desde a infância, com incentivo da mãe e oposição do pai. Estudou em Harvard e se embrenhou no jazz, tocando em casas noturnas antes de entrar para a Filarmônica de Nova York. Nos anos 1960, se tornou figura incontornável da cultura pop americana, ao lado de gigantes como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. Sua vida distante da moral e dos bons costumes era fonte de rumores e olhares tortos. Enquanto isso, ele se preocupava em fazer história. Na impressionante peça Missa, colocou em harmonia orquestra, guitarras e coro — uma mistura herege que fazia brilhar os olhos do regente rock star.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871
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