Filme ‘Até os Ossos’ reforça a peculiar onda canibal no cinema e na TV
O intrigante e belo longa mostra que, de forma simbólica ou literal, o tema está em alta
Dois jovens trocam olhares tímidos em um mercado. O flerte evolui para uma conversa e culmina em uma carona. A conexão é instantânea. Mais tarde, a garota promete ao rapaz que nunca vai machucá-lo. “Essa é uma promessa que você não pode fazer”, diz ele. Nesse caso, o verbo “machucar”, que em geral remete às dores dos corações partidos, ganha outra dimensão no filme Até os Ossos (Bones and All, Itália/Estados Unidos, 2022), que chega aos cinemas em 1º de dezembro. Interpretado pelo ator pop Timothée Chalamet e a atriz em ascensão Taylor Russell, o casal convive com o medo de que, em um momento de descontrole, um possa comer o outro — literalmente.
Tema que vira e mexe pinga no cinema, especialmente no filão gore — subgênero do terror com cenas sanguinolentas —, o canibalismo ganhou novo tempero, com o perdão do trocadilho, em séries de TV e filmes recentes. Distante do clássico americano O Massacre da Serra Elétrica (1974), ou do brasileiro Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), marco do cinema novo — ambos envolvendo a prática da antropofagia —, a leva atual é embalada por tiradas filosóficas e reflexões sociais, do perigo do machismo e do racismo, passando por dilemas como o vazio existencial e a insaciabilidade do amor. No caso de Até os Ossos, a voracidade da paixão é o assunto que está em pauta.
Dirigido pelo italiano Luca Guadagnino, do indicado ao Oscar Me Chame pelo Seu Nome, o longa é um romance envolvente, sobre traumas familiares e a vida daqueles que são obrigados a se virar sozinhos muito cedo. Maren (Taylor Russell) é abandonada pela mãe na infância e pelo pai na adolescência por causa de sua fome peculiar — a primeira vítima de Maren foi uma babá desavisada. Lee (Timothée Chalamet) vive sem rumo na estrada, buscando pessoas solitárias para saciar a fome de carne humana — esta intercalada por refeições comuns. O desejo de estabelecer um lar e de ser aceito na sociedade causa uma dor latejante em ambos: ser normal não parece uma opção viável.
Meu Amigo Dahmer: Estudando com um serial killer
O filão de explorar na ficção seres que colocam a vida de outros em risco pela própria subsistência anda em alta — o sucesso de séries sobre vampiros ou zumbis é exemplo disso. A chegada de Até os Ossos veio precedida de outras produções que abordam o mesmo tema. Sucesso de audiência da Netflix, com mais de 960 milhões de horas assistidas, a minissérie Dahmer: um Canibal Americano, que retrata a história real do assassino Jeffrey Dahmer (1960-1994), observa a prática sob a ótica dos perigos do racismo: muitas das vítimas eram pessoas negras. Na série Yellowjackets, no Paramount+, um time de futebol feminino cai em uma floresta e, para sobreviver, se rende ao canibalismo. Inspirada no clássico da literatura O Senhor das Moscas, a série usa a desumanização de um momento extremo como metáfora para os limites da sororidade.
Exemplar mais curioso dessa leva, o terror cômico Fresh, filme do Star+, liga o canibalismo à misoginia e à era dos relacionamentos virtuais: Noa (Daisy Edgar-Jones) acha que encontrou o príncipe encantado, mas acaba nas garras de Steve (Sebastian Stan), que degusta pedaços das mulheres com as quais se relaciona. Há, aliás, um termo para isso: vorarefilia, nome dado a quem sente atração por comer ou ter parte do corpo comido pelo parceiro.
Em paralelo a essas obras de ficção, um caso verídico saltou nos noticiários. O ator Armie Hammer — que trabalhou com Guadagnino e Chalamet em Me Chame pelo Seu Nome — foi acusado em 2021 por diversas mulheres de abusos sexuais e psicológicos, além de canibalismo. O caso foi analisado na recente minissérie documental House of Hammer: Segredos de Família, disponível no Discovery+. Ao contrário dos vampiros e zumbis das telas, os canibais existem e são ameaças reais.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817
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