Em 1935, o físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) sugeriu um experimento para explicar de forma didática uma inescrutável teoria da mecânica quântica. O primeiro passo é imaginar um gato fechado em uma caixa onde também há um frasco com material radioativo. Se esse recipiente quebrar, o gato morre. Caso contrário, ele vive. Para quem não enxerga dentro da caixa, o resultado é aparentemente ilógico: segundo o cientista, o animal está, para quem olha assim, vivo e morto ao mesmo tempo. Quem abrir a caixa, contudo, verá só um dos dois desfechos. Não se trata de mera charada: o experimento amplamente conhecido como o Gato de Schrödinger sugere que existem duas realidades paralelas — e, em uma delas, o bichano teve mais sorte que na outra. Na série Matéria Escura, que estreia na quarta 8, na Apple TV+, a teoria é destrinchada pelo professor Jason Dessen — vivido pelo australiano Joel Edgerton — para uma sala de alunos pouco interessados. Tal distração é desaconselhada para quem assiste à trama: inteligente e ágil, a adaptação do livro de mesmo nome de Blake Crouch demanda atenção. Como recompensa, oferece entretenimento de engenhosa qualidade.
Matéria Escura reforça uma leva recente de séries classificadas como hard sci-fi, um subgênero da ficção científica no qual teorias difíceis são explicadas de forma detalhada, acompanhadas de visual arrojado e aplicações práticas na sociedade. É o caso da pop O Problema dos 3 Corpos, da Netflix, sobre um enigma envolvendo forças gravitacionais e uma invasão alienígena; e da incensada Fundação, também da Apple TV+, inspirada na obra de Isaac Asimov, na qual a humanidade é regida por uma ciência estatística que se propõe a prever ações coletivas. Em Matéria Escura, o autor do livro, que também atua como showrunner nos bastidores, explora os meandros do dito multiverso, termo que se tornou comum no cinema de super-heróis nos últimos anos, mas que ganha uma roupagem mais elegante e de apelo humano na série.
O problema dos três corpos – Cixin Liu
Jason é um professor universitário, pai de um adolescente e casado com Daniela, papel de Jennifer Connelly. Um dia ele é sequestrado e acorda em um lugar desconhecido. Quando entra em sua casa, não encontra a família, mas, sim, uma namorada, Amanda, interpretada pela brasileira Alice Braga, que trabalha como psiquiatra na empresa onde Jason é uma estrela da pesquisa quântica. A vida aparentemente melhor, mais próspera e profissionalmente realizada não é suficiente para prender o protagonista, que quer voltar à sua realidade original — trilha que dá mote a uma viagem de possibilidades obscuras e até apocalípticas, passando por mundos onde a civilização e o planeta não acabaram bem.
Fundação: saga completa – Isaac Asimov [Box]
Parte essencial da trama, a personagem de Alice segue a mesma trajetória, e com um extra: ao contrário do livro, na série ela ganha um passado que aponta para suas raízes brasileiras — adaptação feita especialmente pelo autor para a atriz. “Hollywood mudou bastante”, diz Alice a VEJA (leia entrevista). “Latinos eram resumidos a papéis estereotipados, de traficantes e assassinos. Hoje, temos oportunidades múltiplas. O que importa é a atuação, e não a etnia.” A atriz, que despontou no filme Cidade de Deus (2002), hoje se divide entre Los Angeles e São Paulo, e mostra na prática essa evolução. Entre 2016 e 2021, ela protagonizou A Rainha do Sul — que, apesar de ser uma série notável, é sobre latinos envolvidos com o narcotráfico. Já na minissérie Assassinato no Fim do Mundo, lançada aqui no ano passado pela plataforma Star+, Alice interpreta uma médica astronauta, também caracterizada como brasileira. “São papéis que funcionam para qualquer nacionalidade”, diz.
No caso de séries como Matéria Escura, em nada atrapalha a variedade de origens dos personagens — pelo contrário, ela a enriquece. Para além da roupagem sci-fi, o drama reflete sobre as consequências das escolhas que cada um faz ao longo da vida. No Brasil ou nos Estados Unidos, sempre existirão indivíduos felizes e arrependidos, realizados e ressentidos. Uma jornada quântica que, ao menos por enquanto, só a ficção pode percorrer.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891