Crime, culinária e risos: a receita saborosa de ‘Estômago’ volta ao cinema
Filme nacional de 2008 acaba de ganhar uma sequência ainda mais espirituosa — e com tempero italiano
O pessoal da série americana O Urso precisa comer muito arroz com feijão para chegar aos pés de Raimundo Nonato, o “herói” de caráter duvidoso do filme nacional Estômago, de 2008. Na quinta-feira, 29, quase vinte anos depois, a sequência Estômago 2 trará o personagem vivido pelo ator baiano João Miguel de volta aos cinemas, com uma dose extra de humor ácido e de cenas de comida – dessa vez, mais apetitosas do que no longa anterior.
No primeiro filme, a trama se divide entre mostrar a história de Nonato, um nordestino que chega em São Paulo sem ter onde cair morto, e seu presente na penitenciária, onde conquista espaço entre os prisioneiros graças ao seu dom na cozinha. A razão que o levou à cadeia é o mistério que conduz o roteiro dirigido e co-escrito pelo cineasta curitibano Marcos Jorge. Ambientado dezesseis anos depois, a sequência mostra Nonato como o chef principal da prisão – pelo menos para o topo da cadeia alimentar dali: o cozinheiro prepara as refeições dos carcereiros, policiais e do diretor da prisão, assim como do líder de facção Etcetera (Paulo Miklos). Mais do que comida, Nonato, chamado pelos colegas de Alecrim, serve também fofocas, num constante leva e traz de informações entre os dois lados, sempre de modo a se beneficiar do que sabe. O equilíbrio se desfaz com a chegada do mafioso italiano Dom Caraglio (Nicola Siri) e seus comparsas. Filho da dona de um restaurante brasileiro na Itália, o bandidão se afeiçoa por Alecrim e seus dotes culinários, fazendo do cozinheiro um item de disputa na cadeia. Novamente dividido em duas tramas, o filme segue a trajetória nada comum do mafioso, fazendo valer a co-produção entre Brasil e Itália.
A VEJA, o diretor falou sobre o filme, sua relação com a culinária e por que decidiu fazer de Estômago 2 uma comédia mais leve que a produção que a precede.
Por que que voltar a esse universo agora? Eu comecei a escrever o segundo filme uns oito anos depois do primeiro. Estômago foi um projeto que me deu muita alegria. Por onde eu passava, as pessoas falavam comigo, sorrindo, felizes, e isso me intrigou, porque é um filme um tanto peculiar, né? Isso sempre me surpreendeu. Quando eu planejei o filme, pensei: “poxa, as pessoas vão sair do cinema chocadas, né? Olha o que o cara fez”. Nunca pensei que a reação seria tão entusiasmada assim em relação ao Nonato. Claro que isso é graças ao carisma do personagem e pela trajetória dele. Então eu queria voltar e tentar fazer algo assim de novo, que trouxesse um sorriso para o público ao fim de uma aventura culinária.
Como é sua relação com a Itália? Eu morei lá por doze anos. Primeiro, aos 17 anos, quando aprendi a cozinhar com a família que me recebeu. Depois, estudei cinema e comecei a trabalhar com audiovisual. Mas eu nunca tinha feito uma ficção na Itália. Era um sonho filmar em Roma. Então aqui repetimos a co-produção com os italianos, que já existia no primeiro filme, mas dessa vez de forma mais intensa.
Os filmes são então um resultado da sua paixão por culinária e cinema? De certa forma. A ideia geral do filme é aliar culinária e poder. Sou apaixonado por filmes de gangsteres. O primeiro era um filme de comida e de cadeia. Agora, temos os criminosos brasileiros em oposição aos criminosos italiano. Outra parte importante da saga é a busca pela identidade, seja ela qual for.
O senhor é do tipo que cozinha ou gosta mais de comer do que de cozinhar? Eu gosto de cozinhar. Eu não sou glutão. Eu gosto de comer coisas diferentes, eu sou muito curioso com comida, mas eu adoro cozinhar. Nunca peço comida. Ou eu vou no restaurante comer, ou eu faço em casa. A culinária pode ser cruel, mas é também uma arte, um conforto, que acende nossa memória emotiva.
Prefere comida brasileira ou italiana? A italiana é mais fácil de fazer, então no dia a dia é o que eu faço. Mas eu sou apaixonado pela culinária amazônica, por isso coloquei o tucupi no cardápio do filme.
A mistura de linguagens do roteiro vai além do português e italiano, passando pelo dialeto siciliano e gírias de presidiários paulistas. Como foi esse preparo linguístico? Durante a pesquisa para o roteiro, exploramos o modo de falar e de se comportar das pessoas. Descobrimos, por exemplo, que os mafiosos italianos de hoje em dia se amparam na representação de filmes antigos para lembrar tradições, pois esses hábitos se perderam com o tempo. Então, curiosamente, o comportamento é uma coisa construída. A linguagem, especialmente dos presidiários brasileiros, foi uma parte importante do Lusa Silvestre, que também assina o roteiro. Ele tem um ouvido muito musical para o ritmo que as pessoas falam, para a linguagem de rua. E o coloquial não pode ser generalizado, cada pessoa tem seu jeito de falar. Então os atores trouxeram um pouco de suas vivências também. A Laysa Machado, por exemplo, trouxe termos do pajubá (gírias usadas entre travestis e mulheres trans que remetem a dialéticos de religiões afro-brasileiras, muito usadas nas décadas de 1970/80 para se proteger da violência policial da época). Tudo isso faz o roteiro crescer — uma parte essencial de um bom filme.