Como agente da segurança nacional dos Estados Unidos, Tim Ballard capturava consumidores de pornografia infantil — até perceber que, enquanto prendia criminosos, nunca salvara nenhuma criança. Decide, então, resgatar um menino sequestrado em Honduras. Na missão, Ballard descobre que a irmã do pequeno Miguel (Lucás Ávila), também vítima da rede de tráfico infantil, foi vendida para um rebelde anarquista e vem sofrendo abusos em algum lugar na Colômbia. O herói se ressente da falta de apoio das autoridades americanas por questões diplomáticas e burocráticas. Mas acredita que recebeu um chamado divino para abandonar seu emprego e arriscar a vida para salvar as vítimas. Obsessivo, passa a seguir um único bordão: “As crianças de Deus não estão à venda”.
Com enredo de ação baseado numa história real, o filme Som da Liberdade (Sound of Freedom; Estados Unidos; 2023), já em cartaz no Brasil, é um daqueles casos em que Davi peita — e vence — Golias no mundo do entretenimento. A produção independente teve orçamento módico, na casa dos 14 milhões de dólares. Tornou-se, a despeito disso, um fenômeno de bilheteria: arrecadou 183 milhões de dólares nos Estados Unidos e Canadá, galvanizando o público cristão e conservador com sua mensagem de alerta contra os pedófilos. Apesar dos diálogos sofríveis e atuações medianas, Som da Liberdade vem se mostrando uma arma potente para propagar ideias da extrema direita americana.
A conversão do longa em símbolo dessa agenda ideológica passou pelo endosso de conservadores como Donald Trump, Elon Musk e Mel Gibson (que é um dos produtores). Além disso, o roteiro usa como pano de fundo uma teoria disseminada pelo movimento conspiratório QAnon. Entre várias ideias delirantes, a organização obscura denuncia (sem provas) a existência de uma rede de tráfico infantil mundial promovida pela esquerda —tática para alarmar a população e demonizar os liberais. Inspiração do filme, o ex-agente Tim Ballard — por ironia do destino — é acusado de má conduta sexual durante suas operações de resgate por pelo menos sete colegas de trabalho. Ele também nega que a obra tenha ligação com o QAnon. Mas fez questão de que o papel dele próprio fosse vivido pelo ator Jim Caviezel, notório apoiador do QAnon e astro de A Paixão de Cristo (2004).
Na esteira do extremismo pop, até certa música country radical vem causando barulho nas paradas americanas. É o caso do hit Try This in a Small Town (Tente Isso em uma Cidade Pequena, em tradução livre), em que o músico Jason Aldean, do estado sulista da Geórgia, prega que arruaceiros, assaltantes e rebeldes que desrespeitam policiais não têm vez em cidades pequenas, já que elas são protegidas por homens armados que não abrem mão de se defender. Com acordes de guitarra e um clipe com cenário patriótico, a música desbancou Taylor Swift do topo do ranking da Billboard e acumula mais de 36 milhões de reproduções no YouTube em dois meses. “Tenho uma arma que meu avô me deu / Dizem que um dia eles vão nos cercar / Bem, essa porcaria pode funcionar na cidade grande”, diz um dos versos raivosos. Lançada pelo músico independente e fazendeiro Oliver Anthony, Rich Men North of Richmond (Homens Ricos do Norte de Richmond) é outro sucesso do ramo. A letra fala de um operário cansado de ser supostamente explorado pelas elites de Washington, acusadas de pagar uma merreca para a classe trabalhadora. A mensagem anticapitalista, ironicamente, foi apropriada por políticos da extrema direita como a deputada republicana Marjorie Taylor Greene, que definiu a música como um “hino dos americanos esquecidos que realmente apoiam esta nação”.
Com o Som da Liberdade e o novo country que se autoproclama “libertário”, a direita radical estabelece uma cultura pop para chamar de sua. É um fenômeno assustador, mas a bilheteria do longa e as reproduções das músicas atestam que a onda tem força — e, pior de tudo, que a polarização ideológica está longe do fim nos Estados Unidos. Para a guerrilha extremista, isso é música para os ouvidos.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860
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