‘Com Amor e Fúria’: a marca da francesa Claire Denis em ‘thriller erótico’
O drama retoma tensões raciais e sociais que permeiam a obra da autoria, criada na África
Sara (Juliette Binoche) transborda de alegria ao lado de Jean (Vincent Lindon), e o amor entre eles parece inabalável. Isso, até o dia em que Sara vê na rua François (Grégoire Colin), o homem que ela deixou para viver com o atual parceiro. A mulher se esconde atrás de uma parede e treme enquanto repete o nome do ex, entre o tormento e o desejo. A cena do filme Com Amor e Fúria (Avec Amour et Acharnement, França, 2022), em cartaz nos cinemas, anuncia o dilema da personagem dividida entre o refúgio de um casamento estável, mas envolto em problemas financeiros e raciais — Jean tem um filho adolescente negro —, e a ebulição da paixão cega sem compromissos. O clima de incerteza que ronda o triângulo amoroso e as cenas de sexo explícitas deram ao filme da diretora francesa Claire Denis o rótulo de thriller erótico. A classificação é refutada pela cineasta de 76 anos, premiada no Festival de Berlim pela obra.
Claire desafia as categorizações de gênero, trafegando do romance picante a produções de terror ou ficção científica — é dela o filme High Life, com Robert Pattinson, sobre criminosos enviados ao espaço. Seus trabalhos tratam, acima de tudo, da busca incansável do ser humano por pertencer — a alguém ou um lugar. O desejo é frustrante e culmina, muitas vezes, em violência e solidão: alguns de seus personagens, com sorte, encontram a libertação. Sua obra bebe, de forma literal ou poética, de uma fonte autobiográfica recorrente.
The Films of Claire Denis: Intimacy on the Border
Claire nasceu em Paris, mas cresceu em diferentes países da África. Seu pai, um funcionário público, trabalhou em colônias francesas como Senegal e Camarões, e se dedicou a criar as duas filhas com seu vasto conhecimento geográfico e político. Aos 12 anos, ela contraiu pólio e voltou à França para se tratar. Claire, porém, nunca se sentiu de fato francesa. “Sou uma filha da África”, diz até hoje. Dois de seus filmes mais elogiados, Chocolat (1988) e Bom Trabalho (1999), são ambientados em território africano e mostram o mal-estar causado pelo colonialismo francês. Com Amor e Fúria aborda o tema de forma tangenciada.
Em uma cena, Sara, que é radialista, entrevista o ex-jogador de futebol e ativista Lilian Thuram, numa participação como ele mesmo no filme. O caribenho conta que sua mãe foi aconselhada a ter filho com um branco, para “clarear” a pele. Pouco depois, o marido de Sara diz ao filho rebelde, fruto de uma relação com uma mulher da Martinica, que o fato de ser negro não pode impedi-lo de sonhar alto. No mundo de Claire Denis, o amor e o desejo acontecem lado a lado com questões políticas e de identidade. É um cinema que não conhece fronteiras.
Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814
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