Tímido ao extremo quando criança, Andrew Scott mal conseguia falar em público até ser matriculado em aulas teatrais por iniciativa da mãe, uma professora de arte. No começo, suas mãos tremiam — mas rapidamente ele se apaixonou. Aos 17 anos, o jovem irlandês tomou a decisão de ser ator. Ganhou seu primeiro papel em Korea (1995), filme de baixo orçamento em que vivia um jovem de relação conturbada com o pai. À época, nem imaginava que interpretações que mergulham na complexidade humana o acompanhariam ao longo da carreira. Hoje, aos 47, Scott atinge um ponto interessantíssimo de sua trajetória, ao colocar em cena um turbilhão de emoções no drama Todos Nós Desconhecidos (All of Us Strangers, Inglaterra, Estados Unidos, 2023), em cartaz nos cinemas: na trama agridoce sobre o luto, ele faz um par romântico gay com Paul Mescal, outro galã irlandês queridinho de Hollywood.
Fleabag: The Scriptures – Phoebe Waller-Bridge
Na história, baseada no livro Strangers (1987), do japonês Taichi Yamada, Adam (Scott) é um escritor solitário que conversa com os pais, mortos em um acidente quando ele era adolescente, e revela ser homossexual, lidando com o preconceito que enfrentou de uma geração retrógrada. Em meio ao confronto do protagonista com seu passado, ele se relaciona com Harry (Mescal), um vizinho sedutor que lhe mostra outras formas de enxergar a vida. O personagem lhe rendeu uma indicação de melhor ator no Globo de Ouro deste ano. Em entrevista a VEJA, o ator ressalta que o trunfo do filme de Andrew Haigh é não se apoiar nos roteiros batidos que mostram as pessoas LGBTQIA+ às voltas apenas com a discriminação e a violência. “Assumir-se para a família não costuma resultar em rejeição ou acolhimento absolutos, mas algo entre os extremos”, diz o ator (leia abaixo).
Cine arco-íris – Stevan Francis Lekitsch
Antes disso, Scott já havia chamado atenção por sua maior especialidade: dar vida a tipos ambíguos (inclusive sexualmente) que se revelam memoráveis. Com o vilão Moriarty, de Sherlock (2010-2017), série da BBC estrelada por Benedict Cumberbatch, acrescentou camadas de pérfida imprevisibilidade ao personagem clássico criado por Arthur Conan Doyle. Também causou furor em Fleabag, produção da BBC e do Prime Video, na pele do padre “sexy” que roubava o coração da protagonista e criadora Phoebe Waller-Bridge. Embora o sacerdote fosse a figura menos sensual possível, Scott fez dele alvo do desejo de milhões de espectadoras — adoração que, segundo ele, só ampliou sua timidez. Para além da contrastante galeria de figuras humanas, é notável a capacidade de Scott de trafegar de tramas homoafetivas a papéis de “machos héteros” rematados, espelhando certa fluidez vista com naturalidade na geração atual. “É o maior ator da nossa época”, define a (exagerada) amiga Phoebe Waller-Bridge.
Box Sherlock Holmes: Obra completa – Arthur Conan Doyle
O talentoso Ripley – Patricia Highsmith
Como gay assumido, o ator também defende mais papéis em que homossexuais superem a pauta de “representatividade positiva”, abrindo caminho para personagens erráticos e fascinantes (além de mais fiéis à realidade), como os de qualquer outro gênero. Sua próxima contribuição nesse sentido será Ripley, minissérie da Netflix que estreia em 4 de abril e na qual vive o adorável golpista criado pela americana Patricia Highsmith — que usa de sua lábia para seduzir um herdeiro ricaço e se apoderar de seu estilo de vida. É preciso um talento imenso para exibir tantas faces na tela.
“Ser gay não é falha nem virtude”
Andrew Scott fala sobre seu papel em Todos Nós Desconhecidos e a “representatividade positiva”:
Em Todos Nós Desconhecidos, seu personagem fica dividido entre a infância nos anos 1980 e um romance gay contemporâneo, questionando se houve avanço contra a homofobia desde então. Qual a sua opinião? É difícil falar em nome da geração atual, mas essa foi, com certeza, uma discussão que tivemos nos bastidores. Creio que haja um avanço na escala global até certo ponto. Não resta dúvida sobre a melhoria no trato de pessoas LGBTQIA+ na mídia, e hoje temos acesso a representações muito melhores do que o preconceito flagrante que era norma no fim dos anos 1980. Mas uma nova onda preconceituosa está em alta — não necessariamente ligada a questões sexuais, mas a identidades de gênero.
O que deseja que a história transmita? Espero que as pessoas entendam que se assumir para a família não costuma resultar em rejeição ou acolhimento absolutos, mas algo entre os extremos. Muitos de nós nos sentimos diferentes de nossos parentes. Pode não ser o caso em alguns núcleos, mas o mais comum é haver algum grau de conflito. O filme abraça isso: não existe positividade tóxica aqui, mas tampouco dispensamos a esperança.
Tanto o filme quanto a série Ripley refutam a ideia da “representatividade positiva” dos gays. Por que contrariá-la? Um dos maiores perigos da ideia de representação é quando minorias são simplificadas para a mera sinalização positiva. Quando personagens se tornam caixinhas a serem preenchidas e viram algo que não reconhecemos, uma porta é fechada ao público. A sexualidade não é falha de caráter, mas também não é virtude.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883