Dizem que ser mãe é padecer no paraíso. Para a personagem de Amy Adams no filme Canina, a frase seria melhor colocada se a maternidade fosse comparada a um “padecer no limbo”. Na produção americana, exibida no Festival do Rio, Amy interpreta a mãe de uma criança de 3 anos de idade – a personagem não tem nome, sendo apenas chamada de mamãe pelo menino. Ela optou por deixar o emprego em uma galeria de arte em Nova York para ficar 100% em casa com o rebento, decisão da qual ela se ressente conforme o peso dos cuidados da família caem totalmente sobre ela. A mulher não tem vida social, há anos não dorme direito, se alimenta mal, está acima do peso que tinha antes da gravidez, e sente que vem “emburrecendo” por causa da confusão hormonal, da privação de sono e das conversas pueris com a criança. Até aí, as agruras da maternidade não diferem de boa parte das vividas por outras mulheres. Ela, porém, começa a desenvolver alguns sintomas peculiares. Pelos cresceram em suas costas, seus dentes ficaram mais afiados, e o desejo por comer quilos e quilos de carne aumentou. A mãe percebe o que lhe parece óbvio: ela está se tornando um animal – mais especificamente, um cachorro.
A trama que vai do filosófico ao cômico satírico, culminando na fantasia absurda, é baseada no livro de mesmo nome da autora Rachel Yoder. A adaptação ficou sob a responsabilidade da diretora Marielle Heller, de Um Lindo Dia na Vizinhança. Enquanto Amy Adams entrega tudo e mais um pouco na pele da mulher que vai do lugar de inferioridade — criticada por colegas de profissão e por outras mães, enquanto perde o respeito do marido — para a posição de animal selvagem poderoso, que não tem mais medos, pudores e submissões. Nessa metamorfose simbólica, a personagem encontra a força e o poder que a levam a uma virada, no melhor estilo “mulheres que correm com os lobos”, como diz o título do livro de Clarissa Pinkola Estés que virou piada na internet após a obra, de 1989, voltar às listas de best-seller recentemente. Nas brincadeiras, mulheres usam nas redes sociais o termo “loba” como adjetivo de poder. Em momentos de ironia, há quem diga que é uma “mulher que chama o Uber para levá-la junto com o lobo”, pois está “exausta”. No caso de Canina, a protagonista literalmente corre com os cachorros da vizinhança em momentos de liberdade extrema. No roteiro criativo, a mensagem que fica é que, para manter a espécie humana viva, mulheres fazem muitos sacrifícios – e elas devem ser honradas por isso… ou o bicho pega.