Quando as restrições do isolamento da pandemia diminuíram, no fim de 2021, a escritora americana Sigrid Nunez escolheu desfrutar a volta à normalidade indo ao cinema. O filme era Mães Paralelas, do diretor espanhol Pedro Almodóvar, estrelado por sua musa favorita, Penélope Cruz. Ao retornar para casa, Sigrid abriu o computador e se deparou com um e-mail da produtora do cineasta, dizendo que ele estava interessado em adquirir os direitos de adaptação de um de seus livros. “Achei que era um golpe, foi muita coincidência”, relembrou a autora em entrevista a VEJA.
O Que Você Está Enfrentando – Sigrid Nunez
Não era golpe. Almodóvar se encantou pelo livro O que Você Está Enfrentando, publicado no Brasil pela editora Instante, que narra, entre várias histórias, o encontro de uma escritora com uma amiga do passado que sofre de uma doença terminal. A adaptação resultou no filme O Quarto ao Lado, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza e forte candidato ao Oscar de 2025. Enquanto celebrava o sucesso do longa, Sigrid dividiu a atenção com outro filme baseado em sua obra: elogiado no Festival de Toronto, O Amigo adapta o livro de mesmo nome no qual uma mulher, vivida por Naomi Watts, se vê obrigada a cuidar do cachorro do amigo que cometeu suicídio. “Foi uma daquelas estranhezas da vida”, diz Sigrid, que tem 73 anos e uma carreira de três décadas — ofício feito em paralelo com o de editora e de professora universitária.
Filha de imigrantes (a mãe era alemã e o pai, sino-panamense), Sigrid cresceu em Nova York, onde ainda mora, em um clima de caos cultural: seus pais continuaram fiéis aos hábitos e línguas originais — e, apesar das raízes latinas, o pai se identificava mais como chinês. Ela se refugiou nos contos de fadas e tomou gosto pela ficção — substrato da arte no qual a ordem das coisas pode ser subvertida pela pena do autor. “Me inspiro na minha realidade, mas não faço autoficção”, afirma. Em comum, suas tramas envolvem escritores e o ato da escrita, o que lhe abre a possibilidade de permear a história com opiniões de tom ensaístico e reflexões poéticas sobre a vida. Seus livros são enxutos, e a ação se dá a partir de eventos aparentemente banais recheados de pequenos detalhes, como o tamanho do cachorro de O Amigo, um dogue alemão, que perde o tutor e deve viver num apartamento de 50 metros quadrados; ou a cor rosada da neve vista pela janela do hospital — e que faz aquele dia ter valido a pena na agenda da mulher terminal.
Espécie de trilogia emocional, O Amigo (2018) e O que Você Está Enfrentando (2020) se completam com Os Vulneráveis (2023), que chegou recentemente ao Brasil. Nele, uma mulher mais velha, um jovem universitário e um papagaio são obrigados a conviver no lockdown. “A morte e a amizade são assuntos que, na maturidade, começaram a chamar mais minha atenção”, diz a autora. O mesmo efeito ela vê em Almodóvar. Com 75 anos, o cineasta fez de O Quarto ao Lado seu filme mais contido e introspectivo. “É claramente a obra de uma pessoa mais velha”, analisa Sigrid. A escritora não se envolveu com o roteiro. Sua participação foi restrita a uma conversa inicial com o diretor e, meses depois, com a atriz Julianne Moore, que viu na autora um espelho para sua personagem, uma escritora com medo da morte e adepta da filosofia de que a vida mora nos detalhes.
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918