Voando a bordo de uma enorme bolha de sabão, Glinda, a Bruxa Boa do Norte, confirma os rumores que rondam a Terra de Oz: sim, a temível Bruxa Má do Oeste, Elphaba, está morta. A alegria da população é enorme e todos celebram o fim da criatura de pele verde que assombrava a região. Assim começa Wicked (Estados Unidos, 2024), adaptação fiel da peça musical de mesmo nome lançada na Broadway em 2003, já em cartaz nos cinemas. A responsável pela morte da bruxa atende por Dorothy — a mesma garota do Kansas que, levada por um ciclone, cai no universo paralelo retratado no adorado clássico infantil O Mágico de Oz, estrelado em 1939 pela então jovem prodígio Judy Garland. O triunfo do bem sobre o mal deu ao longa antológico o final perfeito para a época. Agora, como no musical que lhe deu origem, Wicked põe aquela visão rósea em xeque ao explorar as linhas tênues que separam quem leva o selo de mocinho dos que serão tachados como vilões.
Na adaptação dirigida pelo americano Jon M. Chu, a cantora pop Ariana Grande empresta sua graciosidade e timing cômico a Glinda, em oposição à esverdeada Elphaba, interpretada com força magnética pela atriz Cynthia Erivo. Inicialmente, a trama segue o roteiro típico de um filme adolescente bocó: a loira popular persegue a garota diferente. O impasse, ainda bem, dura pouco. Glinda, que gosta de se autodeclarar uma pessoa do bem, carrega dentro de si uma pequena dose de empatia com a qual, em determinado ponto, se afeiçoa a Elphaba e vira sua amiga. Quando a moça verde se depara com um complô para calar e enjaular animais — antes seres falantes e ativos na sociedade fantasiosa da trama —, ela nota que a discriminação que a seguiu por toda a vida não é exclusivamente em razão da cor de sua pele: a hostilidade vem se espalhando por Oz e quer limar todos os que são diferentes.
Ao explorar temas como racismo, exclusão e abuso de poder, além da solidariedade feminina, Wicked honra suas raízes profundas — as quais sempre estiveram conectadas com o tempo histórico pelo qual passaram. Lançado em 1900, o livro infantil O Mágico de Oz, todo protagonizado por mulheres, espelhava o posicionamento político do autor americano L. Frank Baum (1856-1919), que era a favor do sufrágio universal e da maior participação feminina na sociedade — inspiração vinda de sua sogra, a ativista feminista Matilda Joslyn Gage (1826-1898). Já o filme de 1939 ganhou pitadas mais sombrias, herança da Grande Depressão econômica e da ascensão de líderes fascistas. Décadas mais tarde, em 1995, o autor americano Gregory Maguire olhou para o passado recente e tenebroso da humanidade, capaz de produzir algo como o Holocausto, e investigou as origens do mal no livro Wicked: a História Não Contada das Bruxas de Oz, base do musical. Teria Elphaba nascido perversa? Um dos personagens garante que sim — afinal, a pele verde seria um indicativo de sua maldade. Como boa fake news, a ideia logo se espalha.
Enquanto no filme de 1939 as bruxas vividas por Margaret Hamilton e Billie Burke reagiam aos eventos de um mundo dominado por um líder fajuto, o tal Mágico do título, agora elas devem decidir qual posição tomar diante das injustiças ao redor. O primeiro antídoto para o preconceito se manifesta na relação de Glinda e Elphaba. A amizade surge quando a loira é forçada a dividir quarto com a inimiga na Universidade Shiz, onde Elphaba vira a protegida da poderosa Madame Morrible (Michelle Yeoh). Em um mundo no qual a magia se tornou rara, Elphaba é uma bruxa que ainda detém poderes sobrenaturais — habilidades que Morrible quer ensiná-la a controlar.
Com canções temáticas de notas altíssimas, o musical flerta com uma ópera e abusa do humor e de cores vibrantes. A combinação atraiu um público amplo: a peça passou de 1,6 bilhão de dólares em bilheteria na Broadway. A expectativa é que tamanho sucesso propulsione o filme, que terá uma segunda parte em novembro do ano que vem. Assim, de forma notável e assustadora, o feitiço de 125 anos se mantém deveras atual.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920