Após a derrota humilhante na Batalha de Waterloo, em 1815, Napoleão Bonaparte foi condenado ao exílio em Santa Helena, uma pequena e remota ilha britânica no meio do Atlântico, entre Angola e o Nordeste brasileiro. Lá o ex-imperador francês morreu vítima de um câncer, em 1821, aos 51 anos, e suas últimas palavras foram, em sequência: “França, exército, comandante, Josephine”. A lista elenca as paixões que conduziram a vida do controverso general, da devoção à pátria até a única mulher que amou. Lida no sentido literal, por ordem de importância, a relação deixa claro o combustível do ex-soldado, que saiu do nada e chegou ao topo do mundo: Napoleão era perdidamente apaixonado pelo poder. O custo da ambição foi alto tanto para ele quanto para seus objetos de desejo: no caminho, sacrificou colegas de farda em combates inúteis, abandonou Josephine por “amor à França” e fez do próprio país um pária na Europa. A jornada de ascensão e queda é retratada com toques de ironia e violência no esperado filme Napoleão (Napoleon; Reino Unido; 2023), em cartaz nos cinemas, nova empreitada épica do cineasta inglês Ridley Scott.
Napoleão: O homem por trás do mito
Aos 86 anos, o diretor de Alien, o Oitavo Passageiro e Gladiador se vale da experiência e reputação conquistadas em quase seis décadas de trabalho para bancar o desafio hercúleo de traçar a trajetória de uma das figuras mais biografadas da história. Pesa ainda o fato de que Napoleão passa longe de ser uma unanimidade — as narrativas sobre ele transitam entre os extremos, de herói notável a sujeito patético, o qual compensaria com violência sua pequenez (social e de estatura, pois ele media por volta de 1,60 metro). Não à toa, Scott logo foi criticado por historiadores, especialmente franceses, que contestam liberdades poéticas do diretor, como a cena inicial, que coloca erroneamente Napoleão na execução da rainha Maria Antonieta. Scott não se intimidou com a saraivada de disparos. “Napoleão é fascinante, reverenciado, odiado, amado, mais do qualquer outro homem, líder ou político da história”, disse o diretor. “Como eu poderia não fazer esse filme?”
Houve quem não fez: Stanley Kubrick (1928-1999) planejou uma cinebiografia sobre o personagem, mas os estúdios não toparam bancar os custos — o roteiro da obra perdida vai se tornar uma minissérie nas mãos de Steven Spielberg. Scott não teve a mesma dificuldade de Kubrick: Napoleão custou 200 milhões de dólares — boa parte da verba advinda da coprodução da Apple Studios, que prometeu lançar uma versão estendida do filme (que já tem duas horas e 38 minutos) em sua plataforma de streaming.
O interesse renovado na figura histórica reflete os dias de hoje. Interpretado por um sempre inspirado Joaquin Phoenix, Napoleão ecoa a sociedade polarizada — enquanto o próprio foi um poço de contradições. Um voraz líder antimonarquia, ele se coroou imperador. Estrategista, conduziu embates vitoriosos — glória que o fez ainda mais arrogante e, consequentemente, imprudente: ao menos 3 milhões de soldados morreram nas guerras promovidas por ele.
Seguindo as últimas palavras de Napoleão, o diretor menospreza os detalhes políticos que alçaram o general ao posto de estadista e volta as câmeras para o campo de batalha (onde os 200 milhões de dólares saltam aos olhos) e para o romance complicado com Josephine de Beauharnais (Vanessa Kirby). Viúva e seis anos mais velha que Napoleão, Josephine era nobre até ser vertida em miserável pela Revolução Francesa. Carismática, bonita e elegante, conquistou o militar e mais tarde foi coroada imperatriz ao lado dele. Mesmo apaixonado, Napoleão pediu o divórcio, já que ela não era mais capaz de lhe dar herdeiros — e a França dependia, exclusivamente, de sua futura prole. No filme, ao ler o argumento no texto da separação, Josephine tenta controlar o riso: afinal, é ridícula a vaidade daquele homem. Das batalhas que perdeu, a pior foi a luta inglória contra o próprio ego.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869
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