Aos 58 anos, o diretor Karim Aïnouz padece de um mal que acomete boa parte dos mortais. Apesar de ser um nome respeitado nos grandes festivais de cinema do mundo, o cearense, vez e outra, ainda se pega pensando: “será que vou continuar trabalhando? Vou conseguir fazer outro filme? Vou ter financiamento?”. A sensação ficou mais patente nos últimos anos: antes mesmo da terrível pandemia da covid-19 interromper projetos, profissionais do audiovisual viram suas produções travadas pelo governo de Jair Bolsonaro, que usou como palanque ideológico o discurso voraz contra o cinema nacional e a economia criativa do país. Entre estes longas congelados estava Motel Destino, que captava recurso via leis de incentivo em 2017 e foi barrado de conseguir o financiamento. Por fim, foi rodado no ano passado e, numa virada notável, é agora o único representante latino-americano na disputa pela Palma de Ouro no tradicional Festival de Cannes, na França, que começa nesta terça-feira, 14, e vai até sábado, dia 25. É também o primeiro filme feito por um cearense e ambientado no Ceará a tentar o prêmio máximo da competição. Karim, contudo, não é estranho ao festival. No ano passado, ele disputou a Palma com seu primeiro filme em língua inglesa, Firebrand, e em 2019 levou o prêmio da mostra Um Certo Olhar com A Vida Invisível. Para dar ainda mais trabalho à sua síndrome do impostor, o cineasta volta aos sets gringos este ano, com um filme cheio de estrelas de Hollywood. A VEJA, Aïnouz falou sobre o novo longa, o festival e a missão de jogar fora os estereótipos em torno dos nordestinos.
Ano passado o senhor concorreu à Palma de Ouro com Firebrand, um filme em inglês, feito na Inglaterra. Qual a diferença de entrar na disputa agora com uma produção feita no Ceará? São experiências muito distintas. Firebrand tinha uma atenção gigantesca, astros de Hollywood [Jude Law e Alicia Vikander], e agora é um filme rodado na minha língua, num lugar do mundo que poucos conhecem, onde nunca foi rodado um longa que estivesse em Cannes. Então é emocionante. E essa emoção eu senti também ao rodar o filme.
Como assim? Viemos de um governo de extrema direita no Brasil que perseguiu qualquer atividade cultural no país. Passamos por uma pandemia. Eu me senti como uma pessoa que saiu da prisão e foi correndo para a praia, sabe? Sai da Inglaterra, um lugar tão frio, e vim trabalhar no Ceará, usando essa luz solar forte, incandescente, além da alegria, da cor e do tesão do brasileiro. Foi como um processo de cicatrização que resultou em um filme com uma pulsão de vida enorme.
Pode detalhar melhor esse resultado? Motel Destino é um filme com muita fome de vida, com muito sangue nos olhos. Não é um filme morno, não é um filme contemplativo, nem melancólico. Os três protagonistas, um casal que administra o motel e um rapaz em fuga, são pessoas que têm fome de viver. A ação se passa toda dentro de um motel de estrada. Ele tem um flerte com a pornochanchada, que eu amo de paixão. O Brasil sobreviveu aos anos de chumbo com esse cinema que tem muito senso de humor. Eu diria que Motel Destino é meu filme mais engraçado, ao mesmo tempo que é um suspense e um pouco de fantasia — primeira vez que eu tive coragem de sair da realidade. Eu diria que é um realismo fantástico erotizado.
Por que a escolha de um motel? Primeiro porque é muito engraçado, né? Imagina, um lugar onde você escuta as pessoas transando. O motel como lugar para fazer amor, alugado por hora, é absolutamente brasileiro. O motel americano, aquele para quem tá viajando e dorme na beira de estrada, nasceu na década de 1930, junto com a indústria automobilística. No Brasil, se torna um lugar para encontros sexuais, nos anos 1960/1970, em plena Ditadura Militar. Virou um arcabouço do desejo onde tudo é possível.
Por que esse filme chamou a atenção de Cannes? Acho que é um filme que surpreende. Que vem do Brasil, mas não é drama. É um noir tropical. O comitê de seleção achou o filme muito original, que destoa do que se espera do cinema brasileiro. Com certeza eles estão intrigados.
Seu cinema nada contra os estereótipos que rondam os nordestinos. Concorda? Muito. Quando eu tava crescendo ali no Ceará era uma loucura, eu ficava mal, não me via nas novelas. Eu morria de inveja do Rio de Janeiro. Queria falar e me vestir como eles. Tinha uma coisa de um imperialismo cultural, voltado para o Rio e para São Paulo. Então é muito bom quando a gente pode pegar os meios de produção e contar as nossas trajetórias, que não são as histórias do Sul e do Sudeste, da classe média carioca, entende? A gente também pode estar na tela de cinema, na tela da televisão, do jeito que somos.
Seu próximo projeto é o filme Rosebushpruning, outro título em inglês, com roteiro do grego Efthimis Filippou, um colaborador constante do diretor Yorgos Lanthimos. O que pode falar sobre essa produção? Não muito mais do que isso. Vamos começar a produzir no final de junho e filmar em setembro. Tem a Kristen Stewart, Josh O’Connor e Elle Fanning, e outras estrelas que ainda não podemos falar muito. Maior parte dos atores são americanos e será filmado na Itália. É uma adaptação americana do filme italiano De Punhos Cerrados, de 1965, do Marco Bellocchio. Estou bem animado.