Os eventos recentes na creche em Janaúba (MG), na escola em Goiânia e no cotidiano de muitos bairros do Rio de Janeiro trazem de volta o tema da violência nas escolas. Matança de crianças e de menores sempre causa maior comoção na sociedade do que a morte de pobres, negros ou policiais, ou de genocídios em outros países. A violência nas escolas não pode ser examinada como um caso isolado do contexto histórico e social.
O mal existe e sempre existiu – já está presente no mito da criação. Queiramos ou não, vivemos em uma sociedade que, como disse Anna Harendt, banalizou o mal – a trivialização do mal corresponde ao vazio do pensamento crítico. O que vemos no noticiário político ou nas páginas policiais – cada vez mais semelhantes entre si – é mais um ato do que se desenrola nesse mesmo pano de fundo. Mas o fato de nos comovermos com alguns episódios revela que ainda não nos tornamos totalmente insensíveis.
No caso da violência na escola de Goiânia, o bullying surge como o “suspeito habitual” – para quem se recorda do filme Casablanca. Vale entender melhor do que se trata.
O bullying é mais um de uma série de desequilíbrios ou desajustes emocionais. Sua característica específica é que se trata de um desequilíbrio interativo: os desequilíbrios não se concentram apenas na vítima ou no agressor. O agressor se compraz em humilhar e hostilizar os colegas; seus admiradores valorizam e reforçam seu comportamento e concorrem para humilhar o agredido; e a vítima sofre, mas, como o masoquista, frequentemente se compraz ou encontra conforto no processo. Este é um fenômeno perverso, semelhante ao de sequestrados e prisioneiros que se apaixonam pelos seus sequestradores e algozes. Nada disso é “normal” – no sentido estatístico da palavra. Mas o bullying, como outras formas de violência que sempre existiram, vem se tornando cada vez mais habitual, consentido ou ignorado.
O que se pode fazer? Os afoitos logo correrão para pedir “políticas públicas”, leis, punições ou “capacitação” – esquecendo-se de que estamos diante de um fenômeno cultural e social de amplas proporções. Ele tem a ver com o predomínio do relativismo, a desagregação do tecido social e a disseminação de uma cultura de direitos sem deveres. Deu no que deu. O que nós, como indivíduos, especialmente como pais, podemos fazer?
Primeiro, precisamos entender que o problema é muito complexo. Antes do politicamente correto, havia valores e critérios mais ou menos bem estabelecidos, mas esse tipo de violência ficava embaixo do tapete e a tolerância era maior, de todos os lados. Nada do que se orgulhar. Com o politicamente correto transformado em patrulha da linguagem, torna-se mais difícil até mesmo conversar sobre o tema – especialmente nos ambientes em que o uso, ou até mesmo a percepção sobre o uso de uma palavra, pode gerar agressões e conflitos infindáveis. Essa exigência de patrulhamento da linguagem é muito maior do que crianças e adolescentes, de modo particular, têm condições de administrar. Isso vale para todos os lados da equação. E não adianta chorar o leite derramado ou buscar de volta um passado idílico que nunca existiu. Mas também é arriscado tirar a responsabilidade individual, sob o pretexto de que a responsabilidade é de todos.
Observar os filhos – agressores, apoiadores e agredidos – é uma boa prática. Conversar com eles e com seus colegas e grupos de referência também ajuda a entender os desafios que eles precisam enfrentar. Envolver outros na conversa – pais, escola, comunidades e grupos de referência também ajuda. É fundamental que as crianças e jovens tenham seus grupos de referência, mas é cada vez mais importante que eles saibam se relacionar e comunicar com os outros – inclusive os que pensam e agem de forma muito diferente. Em caso de dúvida sobre o seu filho, vale consultar especialistas – há protocolos razoavelmente robustos para lidar com o tema. Mas, como bem lembra o Solzhenitsyn do Arquipélago Gulag, não existe salvação individual.
Quanto às escolas e demais grupos sociais organizados, o desafio é ainda maior. O ponto de partida é deixar claro para as pessoas que todos são bem-vindos, mas nem tudo que eles fazem é aceitável – isso vale para professores, pais e alunos. Cabe à instituição estabelecer esses limites e, além disso, criar condições, regras e espaços de diálogo para identificar e provocar consensos adicionais entre as crianças e jovens, de maneira a tornar explícitos os direitos, deveres e limites.
Thomas Jefferson já disse que o preço da democracia é a eterna vigilância. O da segurança também.