Em abril de 1989, cinco jovens, quatro negros e um latino, foram presos acusados de estuprar e agredir brutalmente uma corredora no Central Park, em Nova York. Na ocasião, Korey Wise, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Antron McCray e Raymond Santana foram coagidos a confessar o crime depois de horas de interrogatório sem a presença de maiores responsáveis ou advogados. Além da confissão, não havia provas materiais contra nenhum deles — 13 anos depois, um homem chamado Matias Reyes assumiu a autoria do crime, e as acusações contra os rapazes foram retiradas. A história é retratada na minissérie Olhos que Condenam, com direção e roteiro de Ava Duvernay. Disponível na Netflix, a produção de quatro episódios dramatiza um dos erros judiciais mais famosos da história dos Estados Unidos e levanta discussões sobre o racismo do sistema judiciário americano. Confira o que é fato e o que é ficção na série:
O passeio que deu errado e a chegada à delegacia
![ETHCP5](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/06/ETHCP5.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Na noite do dia 19 de abril de 1989, quarta-feira, Korey Wise (Jharrel Jerome), Kevin Richardson (Asante Blackk), Yusef Salaam (Ethan Herisse), Antron McCray (Caleel Harris) e Raymond Santana (Marquis Rodriguez) entraram no Central Park com outros 25 jovens. Com exceção de Yusef e Korey, que eram amigos de infância, os jovens não se conheciam. Korey, assim como na série, estava em um restaurante quando Yusef viu o amigo e o convidou para ir ao parque. Segundo conta no documentário Os Cinco do Central Park (2012), Kevin estava jogando basquete quando avistou o grupo. O amigo que estava com ele seguiu para o jogo e ele foi para o parque. Já Raymond Santana, ao contrário do que é retratado por DuVernay na série da Netflix, não foi para o local aleatoriamente: o pai notou um tumulto na esquina da casa onde viviam e o mandou para o parque afim de evitar confusão. No documentário, os cinco narram que a noite foi agitada: alguns jovens do grupo perseguiram ciclistas, agrediram um morador de rua e arremessaram pedras em carros, cena reproduzida fielmente na série. Quando a polícia chegou, todos correram. Kevin e Raymond foram detidos pela “arruaça”. Segundo relato de Kevin, ele chegou a pular o muro para tentar sair do parque e, assim como reproduzido na série, um policial o agrediu no rosto com o capacete. Os dois estavam prestes a serem liberados quando um investigador soube do caso da corredora e os manteve na delegacia. Antron, Yusef e Korey foram detidos no dia seguinte – os dois últimos, ao contrários do que mostra a série, foram presos a noite na porta da casa de Yusef, e não aleatoriamente na rua durante a tarde.
Confissão sob pressão – 95%
![ETHConfissao](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/06/ETHConfissao.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Detidos pela polícia, os jovens foram mantidos juntos em uma sala da delegacia e, posteriormente, separados para o interrogatório. Quatro confissões foram gravadas — com a exceção de Yusef, que, como mostra a produção, teve o interrogatório interrompido pela mãe. Segundo relatos dos cinco e de familiares, mesmo sendo menores de idade, os responsáveis não estavam presentes na maior parte do interrogatório. Em um dado momento, o pai de Antron McCray foi pedido para se retirar e, como mostrado na série e em seu depoimento, pediu ao filho que falasse o que eles quisessem para que pudessem ir para casa. A ida do pai de Raymond Santana à delegacia também aconteceu como o retratado: por pensar que a situação logo se resolveria, deixou a avó do jovem, que não falava inglês, acompanhando o neto e partiu para o trabalho. Antes das gravações, os então adolescentes foram submetidos a cerca de 30 horas de questionamentos, reconstituídas na produção com diálogos imaginados a partir dos relatos dos cinco. Segundo eles, os policiais diziam que se contassem “a verdade” poderiam ir para casa, e os acusados implicaram um ao outro com detalhes e ações diferentes em cada depoimento. Como apresentado na série, o local exato do crime, a ordem das agressões, as vestimentas da vítima e outras informações importantes para a investigação não estavam alinhadas nos depoimentos. No julgamento, a defesa apontou coerção, mas o júri não foi convencido pelo argumento. Segundo Ronald Gold, que integrou o júri, ele chegou a brigar com outros jurados para que levassem em conta as contradições entre as confissões, mas eles estavam convencidos desde o princípio. “Isso não importava para o júri, se eles confessaram era isso e ponto final”, conta no documentário Os Cinco do Central Park.
A amostra de DNA desconhecida
![ETHDNA](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/06/ETHDNA.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Durante as investigações do caso, uma das meias da vítima foi encontrada com vestígios de sêmen na cena do crime. Assim como retratado na série, o DNA de nenhum dos cinco acusados foi encontrado na amostra. Apesar disso, a promotoria seguiu com as acusações e assumiu a narrativa de que o DNA desconhecido pertencia a um sexto agressor, que teria participado do estupro junto com os garotos e não foi identificado pela polícia — mesmo que a trilha deixada pelo agressor ao arrastar a vítima desacordada indicasse uma única pessoa. Em 2001, Matias Reyes, um agressor sexual em série, preso meses depois do caso, assumiu a autoria do crime, e uma análise confirmou que era seu o material genético encontrado na meia da vítima.
Donald Trump e a cruzada pela pena de morte
![ETHTrump](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/06/ETHTrump.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Em uma cena do segundo episódio da série, Donald Trump, até então “apenas” um magnata do ramo imobiliário, aparece na tela declarando ódio aos agressores de Trisha Meili, a “corredora do Central Park”, seguido de um anúncio feito por ele no jornal pedindo a volta da pena de morte em Nova York. Na produção, a mãe de Korey Wise, condenado pelo crime, assiste a imagem assustada. Os anúncios são reais: na época, Trump gastou cerca de 85.000 dólares em quatro páginas dos maiores veículos da cidade reivindicando o retorno da pena de morte ao estado. Mas ao contrário do que dá a entender na série, os escritos não faziam menção direta aos cinco, nem pediam a aplicação da pena de morte a eles em específico — na verdade, falava em execução a condenados por assassinato. Apesar disso, Trump deixou claro que a cruzada foi motivada pelo caso do Central Park, e se recusou a pedir desculpas aos inocentados. Questionado sobre o caso em 2019, afirmou: “Você tem pessoas em ambos os lados disso. Eles admitiram a culpa.”
O encontro de Korey Wise e Matias Reyes, o verdadeiro culpado
![ETHKorey](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/06/ETHKorey.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Durante o seu confinamento na penitenciária de Attica, Korey se envolve em uma briga com Matias Reyes (Reece Noi) em uma sala de TV. A cena é retratada no último episódio da série, que expõe o abuso físico e psicológico sofrido por ele na prisão. A confusão de fato ocorreu, mas em Rikers Island e, ao contrário do que mostra DuVernay, eles não trocaram socos — embora tenham chegado muito perto disso conforme conta o advogado Michael Warren no documentário Os Cinco do Central Park. Anos depois, os dois voltaram a se encontrar na prisão. Assim como retratado na produção, Reyes se desculpou pela briga de anos antes e, pouco depois, em um interrogatório feito na prisão, confessou o crime do Central Park detalhando e a sua ação, confirmada posteriormente pela comparação do seu DNA ao da amostra desconhecida encontrada na vítima.
Promotora best-seller e sem escrúpulos
![ETHLinda](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/06/ETHLinda.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Em uma cena do episódio final da série, Nancy Ryan (Famke Janssen) — responsável por retirar as queixas em 2002 — confronta a promotora Linda Fairstein (Felicity Huffman) com os erros da investigação e alguns livros. ”Enquanto você escrevia romances policiais, Kevin, Antron, Yusef, Raymond e Korey cumpriam pena por um crime que não cometeram.” De fato, a promotora virou best-seller: dos 24 livros que escreveu, 16 entraram na lista do The New York Times. Com a estreia de Olhos que Condenam, que pinta a jurista como uma mulher sem escrúpulos para condenar adolescentes mesmo sem provas, Linda veio a público e chamou a série de “uma fabricação”. Em um artigo publicado no The Wall Street Jornal, pouco depois do lançamento, disparou críticas contra Ava DuVernay. “Ela escreveu uma narrativa falsa e ultrajante envolvendo uma articuladora maligna (eu) e falsos acusados (os cinco)”, ao que Ava respondeu com um tuíte: “típico e esperado. Seguimos”. Em março, a ex-promotora entrou oficialmente com um processo contra a Netflix, DuVernay e a co-escritora Attica Locke por difamar sua imagem.
É difícil afirmar até que ponto a representação de Linda é verdadeira — os diálogos são imaginados e a personagem parece, de fato, estereotipada. Linda também não estava presente no primeiro dia de investigações, como mostra a série, chegou aos interrogatórios apenas no dia seguinte. Mas assim como retratado ao final da produção, ela segue defendendo que os cinco participaram do crime, apesar da absolvição. No artigo para o WSJ, aponta outros crimes praticados por um grupo de jovens naquela noite, como agressão e “motim” e afirma que a imagem de que eram 100% inocentes é falsa. No documentário Os Cinco do Central Park, os acusados confirmam que estiveram no parque com o grupo, e descrevem como alguns jovens perseguiram ciclistas, agrediram um morador de rua e jogaram pedras em carros — mas ao contrário do que afirma Linda, negam ter participado das agressões, e todas as queixas em relação ao estupro foram retiradas, por falta de evidências, depois que Matias Reyes assumiu a autoria do crime.