‘O Último Duelo’: O caso real do estupro que marcou a história da França
Trama do filme com Matt Damon, Adam Driver e Jodie Comer retrata o derradeiro julgamento por combate no país europeu na Idade Média
Em janeiro de 1386, a francesa Marguerite de Thibouville, esposa do cavaleiro Jean de Carrouges, foi atacada e violentada pelo escudeiro Jaques Le Gris, um desafeto de seu marido que, outrora, já havia sido um grande amigo. O crime real culminou no último julgamento travado por um duelo mortal na França da Idade Média e marcou a história do país em uma época em que denunciar um estupro era uma raridade – e demandava mais do que coragem: a mulher que o fizesse poderia ser condenada à morte se fosse considerada mentirosa.
Este mês, a história chegou aos cinemas no filme O Último Duelo, adaptação do livro de mesmo nome escrito por Eric Jager, lançado no Brasil pela editora Intrínseca. Sob a direção de Ridley Scott, o longa foi dividido em três partes, com a verdade de cada envolvido no caso entremeada por guerras, orgias e disputas políticas. No elenco, Jodie Comer interpreta Marguerite, Adam Driver vive Le Gris e Matt Damon assume o posto de Carrouges. Também ganha destaque Ben Affleck na pele do corrupto conde Pierre de Alençon. Confira abaixo o que é real e o que é ficção no filme:
Carrouges e Le Gris: amigos e rivais
O filme mostra que Jean de Carrouges e Jacques Le Gris eram amigos e colegas de campo de batalha, até a relação amargar em uma disputa por terras que seriam parte do dote de Marguerite para Carrouges, mas acabaram presenteadas a Le Gris pelo conde Pierre. Le Gris se tornou queridinho do conde e tesoureiro do condado por sua inteligência e habilidades administrativas, adquiridas quando entrou, por um período, para o clérigo, ambiente onde foi educado. Toda a história de fato ocorreu na vida real. Outro detalhe, que o filme apenas pincela, é que os dois eram tão amigos que Le Gris foi padrinho do filho de Carrouges com sua primeira esposa – a mulher e a criança morreram de uma doença desconhecida.
Orgias no castelo
A fama de mulherengos de Pierre d’Alençon e Jacques Le Gris os precedia. Como retratado no filme, Pierre tinha uma amante na corte, mas também promovia festinhas intimas com várias mulheres e a presença de amigos, como Le Gris. O conde de fato teve oito filhos com a esposa, ao longo de 14 anos. Já Le Gris foi casado por um período, relação ignorada pelo filme.
A verdade de Marguerite
No filme, três versões são contadas sobre o crime. Na versão do marido, ele se impõe como o soldado digno e apaixonado, que precisa vingar a honra da esposa. No trecho destinado a Le Gris, o estupro de fato acontece, mas de forma “romantizada”: os “nãos” ditos por ela teriam sido só um melindre de uma dama, que, no fundo, teria gostado da relação. Ao fim, a versão de Marguerite mostra a jovem lutando contra o agressor e também receosa de não receber o apoio do marido, que não era tão doce assim. Le Gris negou o estupro até o fim, mas anotações feitas pelo advogado do escudeiro levantaram dúvidas entre os historiadores sobre sua inocência. O filme trata o depoimento de Marguerite como o mais verdadeiro, posicionamento também assumido pelo autor do livro que, após ler todos os registros do julgamento, não teve mais dúvidas de que ela dizia a verdade.
O retrato de como ocorreu o estupro
O filme retrata com certa fidelidade os acontecimentos em torno da agressão, mas ameniza a versão original de Marguerite, que é mais violenta. No roteiro, Le Gris entra no castelo com a ajuda do amigo Adam Louvel, que convence Marguerite a abrir a porta do castelo para ele se abrigar do frio, pedido que ela titubeia, já que está sozinha – sua sogra levou todos os criados em uma viagem. Os dois entram, e Louvel, eventualmente, sai e deixa os dois sozinhos. Le Gris declara seu amor e, rejeitado, a segue até o quarto, onde a violenta e depois a ameaça, dizendo que não conte ao marido sobre o ocorrido, pois ele poderia matá-la. No depoimento real, Marguerite conta que Louvel ajudou a imobilizá-la e os dois homens a carregaram pela escada até o quarto. Por se debater contra Le Gris, Louvel ainda o ajudou a amarrar a mulher na cama. A violência física lhe deixou marcas pelo corpo, atestadas pelo marido mais tarde. Le Gris fez ameaças para que ela ficasse em silêncio e ainda lhe jogou uma bolsa com moedas de ouro, como se ela fosse uma prostituta.
Apelação para um duelo
Na época, o estupro era punível com multa ou morte, contanto que um homem, seja o marido, pai ou irmão, fizesse a acusação como uma violação de posse. A falta de confiança na palavra de uma mulher fazia com que o tribunal a incriminasse mais do que a defendesse. Assim, era difícil que estupros fossem reportados à Justiça. Marguerite e Carrouges, logo, sabiam que denunciar Le Grin seria muito difícil e lhes traria consequências – especialmente porque ele seria absolvido na “primeira instância”, pelo conde Pierre, seu amigo e primo do rei. Por isso Carrouges foi direto ao rei Charles VI e propôs o duelo, que se tornaria o último do tipo apoiado pela Justiça na França. Assim, quem decidiria sobre qual era a verdade, seria Deus, ao permitir a morte do culpado no combate.
Gravidez após o estupro
Pouco após a agressão sexual, Marguerite ficou grávida. Antes, por cinco anos, ela tentava ter um bebê com o marido, sem sucesso, o que levantou suspeitas sobre a paternidade da criança. A gestação ainda agravou o caso na corte, já que, na época, acreditava-se que uma mulher só engravidaria se tivesse sentido prazer na relação – logo, um estupro não poderia gerar uma criança. Marguerite foi então questionada sobre isso, negando que a concepção seria fruto da violência. O filme é fiel ao retratar a trama sobre a criança, que nasceu pouco antes do duelo.
O duelo
O dramático embate que encerra o filme aconteceu no dia 9 de julho de 1386. A luta é um dos pontos altos da produção. O resultado, com a vitória de Carrouges e a morte de Le Gris, de fato aconteceu. Porém, os detalhes retratados ali bebem e muito da ficção. Marguerite não estava presente na arena, segundo anotações do advogado de Le Gris, mas de fato seria queimada viva se o marido morresse – um sinal de que ela havia mentido. Boa parte do embate retratado no longa destoa de registros da época. A arena era pequena, então não demorou para quem ambos descessem dos cavalos para uma luta corpo a corpo. Não se usavam machados em embates do tipo e os animais não morreram no meio da batalha.