Marie Curie (1867-1934) é a mais conhecida e renomada cientista feminina na história. Nascida Maria Sklodowska, na Polônia, ela se mudou para Paris na década de 1890 para estudar e, em uma época em que isso já era por si só revolucionário, se tornou a primeira mulher a fazer doutorado na França. Foi por meio de sua tese que passou a se debruçar sobre o fenômeno da radiação, baseada nos estudos iniciais do físico Henri Becquerel. Na necessidade de um laboratório, trabalhou ao lado de Pierre Curie – com quem dividiu não só o espaço laboral, mas também a ciência, a vida e duas filhas, Irene e Ève. Os esforços do casal resultaram em um Prêmio Nobel em Física, 1903, “em reconhecimento pelos extraordinários serviços que ambos prestaram através da suas pesquisas conjuntas sobre os fenômenos da radiação descobertos pelo professor Henri Becquerel”.
Foi em 1906, no entanto, que uma grave tragédia colocou freios nas conquistas do casal: ao atravessar a rue Dauphine, em Paris, Pierre foi atropelado por uma carruagem e teve seu crânio esmagado. Marie prosseguiu com os estudos e foi condecorada com mais um Prêmio Nobel em 1911, dessa vez em Química, pela descoberta dos elementos Rádio e Polônio – sendo assim a primeira pessoa e a única mulher a ganhar o Nobel duas vezes, além de ser a única pessoa premiada em dois campos científicos diferentes. Foi também a responsável por cunhar o termo “radioatividade”, cujos desdobramentos moldaram, ativamente, os acontecimentos do século XX, desde a explosão da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki em 1945, a mando dos Estados Unidos, às descobertas da quimioterapia como tratamento eficaz ao câncer.
Uma das produções mais vistas na Netflix na última semana, Radioactive conta a vida de Marie Curie com base na biografia em graphic novel homônima de Lauren Redniss. Embora retrate com precisão boa parte do trabalho feito pela cientista polonesa, o longa romantiza alguns detalhes para adaptar a história ao cinema. Confira abaixo o que é real e o que é ficção em Radioactive:
O encontrão de Marie e Pierre
De rosto enfiado em um livro, Marie (Rosamund Pike) caminha apressada por uma rua empoçada na Paris de 1893. O que acontece em seguida é o bê-a-bá de quase toda obra de ficção adolescente: ela tromba com um rapaz na rua e derruba o livro, ao que ele pega do chão e puxa assunto. “Duclaux? A senhorita se interessa por microbiologia?”, pergunta Pierre Curie (Sam Riley) – e assim começa, em Radioactive, a história do casal de cientistas mais renomado do século. O clichê é uma das liberdades criativas que o longa adota para açucarar a relação dos dois, um dos pontos de maior enfoque no enredo. Na realidade, Marie e Pierre se conheceram a partir da introdução de Józef Wierusz-Kowalski, um professor de física polonês que sabia da necessidade da cientista por um laboratório (como acontece no filme, Marie fora despejada do que estava usando anteriormente) e pensou que Pierre seria capaz de acomodá-la em outro. “Percebi a expressão grave e gentil de seu rosto”, escreve Marie, em entrada reproduzida em sua biografia Radioactive, “bem como um certo abandono em sua atitude, sugerindo um sonhador absorto em suas reflexões”. Eles então dividem o espaço em comum – o primeiro passo para a formação de uma parceria de sucesso, no amor e na ciência.
O medo de hospitais
Embora tenha nascido e crescido na Polônia, a trama focaliza em sua vida adulta, instalada em Paris. Vira-e-mexe algum elemento narrativo retoma o elo com o país natal – quer seja pelo nome dela, que virou ‘Marie’ quando migrou para França, quer seja pela irmã Bronia (Sian Brooke) – mas um em particular se destaca: a sequência de flashbacks envolvendo sua mãe, que morreu em um hospital quando a cientista tinha dez anos. Para trazer o passado à tona, e assim humanizá-la um pouco mais, Radioactive imagina que, por causa do evento traumático na infância, a polonesa criou uma verdadeira fobia a hospitais. Embora o sentimento seja recorrente no enredo, não há evidências que sustentem a teoria, tampouco que Marie ingressou na ciência para “ajudar as pessoas fora das enfermarias”.
Os Curie não sabiam dos perigos da radioatividade
Para a agonia de muitos espectadores – hoje felizmente cientes dos perigos da exposição à radioatividade –, Marie mantém um pequeno jarro luminoso com o elemento químico Rádio junto de si como um amuleto e, não raro, dorme junto dele. Isso realmente aconteceu na vida real: “Justo quando o mundo os enchia de aclamação e riquezas, os Curie esmoreceram”, escreve Laura Redniss na biografia Radioactive. “Os poderes do Rádio com os quais estavam tão fascinados corroeu seus ossos, rareando a respiração, queimando a pele. Todo o laboratório era tóxico. A radioatividade tinha feito os Curie imortais. Agora, os matava.” Pierre também carregava um pequeno frasco no bolso para que pudesse mostrar, empiricamente, como emitia luz e calor. Ao contrário do que mostra o filme, no entanto, Marie nunca reconheceu os perigos da radiação e, mesmo hoje, os estudos laboratoriais e pertences pessoais do casal ainda são tão radioativos que não podem ser manuseados sem a proteção adequada.
O envolvimento dos Curie com espiritualismo
Tão logo depois de se difundirem, os elementos radioativos passaram a ter “propriedades milagrosas” no imaginário popular. Ainda na primeira metade do filme, uma mulher espiritualista diz usar a tecnologia dos raios-X para se comunicar com os mortos, o que desperta a atenção de Pierre (e o ceticismo de Marie). Isso é baseado em uma médium italiana da vida real chamada Eusápia Palladino, com quem os Curie de fato trabalharam, embora o filme não retrate o interesse palpitante de Pierre sobre as sessões espíritas com tanto furor. Mais intrigado nos desdobramentos científicos do que em se comunicar com entes falecidos, Pierre enviou uma carta ao físico francês Georges Gouy poucos dias antes de morrer. “Existe todo um território de fatos inteiramente novos e estados físicos no espaço dos quais não temos ideia”, escreveu ele. “Não há mais como duvidar da existência de fenômenos espíritas.” No entanto, Eusápia foi mais tarde descoberta como uma fraude por usar truques de mágica em suas sessões.
O caso com Paul Langevin
O filme é (quase) certeiro ao retratar o escândalo sexual que recai sobre Marie cinco anos depois da trágica morte de Pierre. Em uma sociedade ultraconservadora como a europeia de meados de 1900, caiu na imprensa que a cientista, com então 44 anos, estava envolvida romanticamente com o físico francês Paul Langevin, um brilhante ex-aluno de Pierre dono de um “bigode glorioso”, como descrito por Marie em suas anotações. Apesar de separado, Langevin ainda estava tecnicamente casado, o que levou sua esposa a contratar um detetive particular para investigar o caso e a expor aos jornais cartas íntimas trocadas por Marie e Paul – o que de fato aconteceu, e uma das manchetes inclusive dizia se tratar da “maior sensação em Paris desde o roubo da Mona Lisa”. Rechaçada, a cientista foi alvo de xenofobia e antissemitismo, acusada de ser uma “polaca judia destruidora de lares” (ela era, na verdade, católica não-praticante). Quando o escândalo foi a público, Marie estava em uma conferência em Bruxelas e, ao voltar para casa, encontrou uma multidão enraivecida que protestava contra sua permanência na França. Para proteger sua família, ela e as filhas procuraram refúgio com a amiga Camille Marbo, embora o filme pinte que a cientista tenha se recusado a arredar o pé.
A polêmica sobre o segundo prêmio Nobel
Três dias depois do caso com Paul Langevin estampar os tabloides, Marie conquistou seu segundo prêmio Nobel, em 1911, pela descoberta dos elementos Rádio e Polônio (assim batizado por causa de sua terra natal). Com o escândalo ainda muito recente, o comitê da premiação sugeriu que a cientista não fosse à cerimônia na Suécia – algo que o filme retrata corretamente. Em resposta ao desencorajamento, a Marie da vida real escreveu: “Os passos que aconselham parecem-me um grave erro. Não há conexão entre meu trabalho científico e os fatos da vida privada.” Ninguém menos que Albert Einstein saiu em defesa da cientista, seu bom amigo e correspondente. Em carta, disse que, “se a ralé continuar a se ocupar com você, então simplesmente não leia esta bobagem, mas sim a deixe para o réptil pela qual ela foi fabricada.” E, de fato, ela foi receber a honraria em Estocolmo. Em seu discurso, destacou diversas vezes o pronome “eu”, como forma de se reafirmar perante à comunidade científica.
“A história da descoberta e do isolamento dessa substância forneceu provas da hipótese que eu formulei segundo a qual a radioatividade é uma propriedade atômica da matéria e pode proporcionar um método para a descoberta de novos elementos. […] O isolamento da rádio como sal puro foi empreendido por mim, sozinha […] Eu medi […] Eu pensei”.
A doação de seus prêmios Nobel para financiar máquinas de raio-X
Da janela de seu quarto, Marie assiste tropas francesas caminhando em direção à Primeira Guerra Mundial. Já beirando os 50 anos, mas de saúde fragilizada por causa da exposição prolongada ao Rádio, a cientista de Rosamund Pike diz à filha Irene que já não pode ser útil na Guerra por “estar doente e ser uma mulher”. Não é isso que aconteceu na vida real. Pouco tempo antes da invasão do exército alemão, o governo da França decidiu por transferir a capital do país para Bordeaux, ao que Curie transportou a única amostra de Rádio disponível no país para a cidade, a fim de proteger seu trabalho e impedir que tropas inimigas se apossassem do elemento químico. Rapidamente de volta à Paris, estava determinada a aplicar seus conhecimentos científicos para ajudar os combatentes da Guerra e inventou o primeiro “carro radiologista”, unidade móvel equipada com uma máquina de raios-X. Só tinha um problema: não havia verba o bastante para financiar a invenção. No filme, Marie contorna o problema ao dizer para o Ministro da Guerra derreter seus prêmios Nobel, feitos de ouro puro. Na vida real, ela tentou (e não conseguiu) doar as medalhas ao Banco Nacional da França assim que a Guerra começou, e usou o dinheiro com que foi laureada pela Academia Sueca para comprar títulos de guerra. Além disso, buscou apoio na União das Mulheres da França, cuja verba foi o bastante para produzir o primeiro carro. Ela então foi atrás de mulheres francesas ricas para mais veículos, e conseguiu outros 20.
“Vou desistir do pouco ouro que possuo. Acrescentarei a isso as medalhas científicas, que são bastante inúteis para mim”, escreveu Marie na época. Suas máquinas de raio-x portáteis foram batizadas de “Petites Curies” (“pequenos Curies”) e, ao lado da filha, a cientista participou ativamente no front, tendo que aprender a dirigir e os princípios básicos de mecânica, como trocar pneus e limpar carburadores. Se estima que as ambulâncias foram responsáveis por radiografias de mais de um milhão de soldados durante a Guerra. “Os médicos não estavam mais realizando cirurgias exploratórias às cegas em corpos já danificados”, escreveu Redniss em Radioactive.