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Muito além da caricatura

Perderão os burlescos, pois, embora pareça, o Brasil não é um circo

Por Dora Kramer Atualizado em 4 jun 2024, 16h30 - Publicado em 19 abr 2019, 07h00

Reconheço, há um quê de diversão no tiroteio digital contra as figuras mais caricatas do governo, aí incluído para gáudio geral o presidente da República. Jair Bolsonaro fornece amplo material, bem como alguns de seus ministros. O espetáculo rende risos, grosserias, irresponsabilidades à deriva, irrelevâncias a granel, mas produz também preocupações consistentes.

Nem todas, é verdade. Parte delas completamente inconsistente — decorrente dos temores de determinados ativistas do apocalipse (alguns deles, de sofá) que até outro dia enxergavam a no­mea­ção de militares para funções no governo como anunciação do apocalipse autoritário. Esses mesmos hoje celebram a ponderação dos generais, quem diria?

É o fenômeno conhecido como adaptação das impressões aos fatos. Mesmo assim, persiste a visão de que há um embate entre a ala circense e o grupo dos consistentes com placar favorável àquela. De acordo com essa concepção, o burlesco tenderia a prevalecer devido ao presidente, seus filhos e apoiadores mais barulhentos.

Um exame detido da realidade e desprovido da ideia preconcebida de que tudo é deboche e descaso no país desmente essa versão e demonstra a preferência do brasileiro pela seriedade, ponderação e competência. Fosse diferente, Bolsonaro, filhos e companhias toscas não teriam tido de engolir os recuos a que foram obrigados.

As relações com a China teriam ido para o espaço, a embaixada brasileira em Israel já estaria em Jerusalém, as escolas públicas ensinariam que a Terra é plana desde Adão e Eva, 45 embaixadores lotados mundo afora teriam voltado para Brasília, a tal da pauta conservadora de costumes estaria em franca tramitação no Congresso como protagonista da salvação nacional no lugar da reforma da Previdência, e por aí iríamos caso tivessem razão os que acreditam em bicho-papão.

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Não que o presidente e partidários não gostariam de ver prevalecer suas crenças. A questão é que não podem. São impedidos pela materialidade democrática de fazer o que lhes dá nas respectivas telhas. Uma coisa é o desejo de um governante de atuar em determinada direção. Outra são os obstáculos impostos pela reação dos governados por intermédio de suas instâncias de representação e canais de comunicação. É a antiga e benfazeja regra de que o poder pode muito, mas não pode tudo. Nem aquele supremo, encarre­gado da última palavra.

O que conseguiram os ministros Anto­nio Dias Toffoli e Alexandre de Mo­raes além de atrair repúdio generalizado ao Supremo Tribunal Federal e se expor ao ridículo de censurar um texto que passou a circular com franca amplitude depois da ordem contra a revista digital Crusoé? Nada.

Pois é disso que se trata: nada há para temer em atitudes desprovidas de eixo e fora do contexto democrático. Quanto mais caricatos seus autores, mais reação provocam, mais rápido tendem a cair do picadeiro porque, embora pareça, o Brasil não é um circo nem o brasileiro fica confortável vestido no figurino de palhaço.

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Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631

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