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Linha torta

Quando a celebração da igualdade interdita o debate, o risco é o flerte com a censura ‘do bem’

Por Dora Kramer Atualizado em 4 fev 2022, 15h08 - Publicado em 4 fev 2022, 06h00

Chico Buarque tem todo o direito de cantar ou não cantar o que bem entender. Jornalistas têm pleno direito de discordar de artigos publicados nos veículos onde trabalham. Assim como é assegurada aos cidadãos residentes em países democráticos a prerrogativa de se manifestar livremente dentro dos preceitos legais e é, também, dever de todos fazê-lo na obediência da civilidade. Afinal, como bem registra o título do espetacular documentário (Globoplay) sobre Nara Leão, o canto é livre. Ou deveria ser. Da série nasceu a polêmica da vez porque em um dos episódios Chico Buarque declara que não cantará mais Com Açúcar, com Afeto para “não desagradar às feministas” que repudiariam o (suposto) caráter machista da canção composta em 1967 a pedido de Nara.

Repetindo, o autor é livre para fazer o que quiser. Só não dispõe de autonomia para sugerir que quem queira cantar e/ou gostar da música seja defensor do machismo. Dias antes, profissionais da Folha de S.Paulo assinaram uma carta aberta à direção do jornal contestando o artigo do antropólogo Antonio Risério sobre racismo.

Até aí, tudo bem, não fosse o fato de que o abaixo-assinado pregava a proibição de publicações com teor semelhante. O protesto, aliás, pouco ou quase nada tinha a ver com o que estava de fato escrito no artigo em questão. Na essência, acusou-se ali o jornal de ser racista. A isso se dá o nome de censura expressa na tentativa de demonstrar superioridade moral em relação ao diverso. Justamente o contrário do respeito ao próximo, matéria-prima na qual se sustenta a arte da convivência coletiva. Produto esse em falta no mercado do debate público, na abordagem de questões que o mundo hoje nos apresenta como essenciais para a evolução da humanidade.

Natural e, sobretudo, necessário que determinados comportamentos, sejam eles na palavra, na ação ou no pensamento, antes vistos como normais, se tornem inaceitáveis e sofram adaptação ao novo tempo. Trata-se de um benfazejo aprimoramento das relações humanas.

“Quando a celebração da igualdade interdita o debate, o risco é o flerte com a censura ‘do bem’ ”

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No índex civilizatório se enquadram os preconceitos, as ideias, os julgamentos e quaisquer manifestações que preconizem discriminação e estabeleçam hierarquias entre pessoas ou grupos por suas características. A celebração da igualdade, junto aos esforços de fazê-la prevalecer, melhora a espécie.

Nenhum reparo, portanto, se impõe aqui ao correto. Política, social ou culturalmente falando. Sendo contraponto ao errado, o certo é um ideal a ser alcançado. Ao persegui-lo de modo errático, no entanto, se incorre no risco de cair no campo contrário, o da intolerância, da incivilidade, do desrespeito do direito de outrem, na interdição das ideias, naquilo, enfim, que agora se chama cancelamento.

A palavra remete a comportamentos primitivos, rudes. Cancelar quer dizer eliminar, riscar do mapa. Quando aplicada a opiniões, significa subtrair a validade do contraditório. E isso não como a conclusão do encadeamento de argumentos, mas em decorrência de juízo formado não raro com base na hostilidade, na repulsa ao que vem de lá. É estabelecida uma regra a ser seguida sem nuances e quem não obedecer a ela leva pancada.

Assim andamos vivendo. Note-se, para regozijo dos retrógrados com certidão passada no cartório do atraso. Desse modo, eles encontram campo fértil para tentar invalidar o esforço evolutivo chamando-o de autoritário. Nesse aspecto se dá a eles razão e recursos retóricos para atrair os adeptos da defesa do mundo velho.

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Essa prática patrocina a tese enganosa, especialmente deletéria para a formação dos jovens que não viveram a ditadura no Brasil, de que existe censura “do bem”. Não existe. A definição de censura é clara: “Análise de trabalhos artísticos, informativos etc., com base em critérios morais ou políticos para julgar a conveniência da liberação pública à sua divulgação”.

Aos signatários dessa bossa nada nova, conviria lembrar os idos de dona Solange Hernandes, a ferrabrás chefe da Divisão de Censura e Diversões Públicas que entre 1981 e 1984 vetou e cortou em produções artísticas tudo o que na visão dela atentava contra os bons costumes e a política vigente.

Na visão dela e de seu entorno, bem entendido. Por essa lógica, estava dando o seu melhor em prol da preservação moral dos olhos, ouvidos, pensamentos e sentimentos alheios. Não dá para ser assim.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775

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