O ministro Torquato Jardim foi tido como inconveniente ao dizer uma verdade sobre o descontrole das autoridades em relação à segurança pública no Rio de Janeiro, quando o que se vê é que o titular da Justiça foi bastante comedido ao circunscrever à polícia suas considerações sobre o conluio entre agentes públicos e operadores do crime no estado, particularmente na cidade-síntese da brasilidade.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, foi mais incisiva ao qualificar o Rio como local onde se vive um clima de “terra sem lei”. Digamos que não seja, e não é, o único território nessas condições no país. Uma voltinha atenta pelo Nordeste (escolha-se, por exemplo, Alagoas) proporciona ao espectador cenas tão ou mais dantescas quanto, no quesito interdependência da podridão entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Ocorre que o Rio de Janeiro é um cartão-postal dotado de eco. “Cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos, capital do sangue quente do Brasil”, na descrição precisa da carioquíssima Fernanda Abreu, onde o que acontece se espalha pelo país e repercute no exterior. Tudo é muito visível no Rio.
A transformação das favelas (o.k., comunidades) em distritos dominados pelo tráfico ocorreu à vista de todos, bem como os desmandos e as descomposturas em série de governadores, deputados, vereadores e até de integrantes do Judiciário se deram à luz do dia.
O casal Garotinho é freguês habitual da Justiça Eleitoral. Sérgio Cabral, um exibicionista dos próprios excessos, formou com Jorge Picciani e Paulo Melo a trinca que desde o fim do século passado se revezou no controle da Assembleia Legislativa mediante os métodos que hoje a confinam em Benfica. Isso para citar só alguns herdeiros do patrimônio de ilicitudes construído por antecessores ao longo dos últimos quase cinquenta anos.
A tomada de assalto de um estado só é possível quando se estabelece aquela conexão perversa entre poderes que adoece a democracia e, antes de matá-la, desmoraliza as instituições. Quando um elo da corrente se rompe materializado no exercício da independência republicana, é o momento em que se sinaliza a possibilidade de serem desfeitos esses acertos explícitos ou mesmo acordos tácitos.
É o que estão fazendo o Ministério Público, a Polícia Federal, tribunais superiores, juízes e desembargadores, por esse motivo alvo de acusações de que exorbitam das respectivas funções, quando exorbitantes foram e são as condutas ilícitas contra as quais atuam.
A pedra de toque dessas ações é a preservação da autonomia funcional. Quando há hesitação nesse exercício, abre-se espaço para o equívoco. O Supremo Tribunal Federal, a despeito de todos os serviços prestados à independência dos poderes, acabou caindo na armadilha da conciliação ao decidir o caso das medidas cautelares contra o senador Aécio Neves com um olho no gato, o outro no peixe.
Atirou no que viu, o receio de atrito com o Senado, e acertou no que não viu: o afã de parlamentares país afora para dar proteção aos seus pares.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558