A relação entre o mercado de crédito e o Judiciário é ao menos tão antiga quanto as peças de Shakespeare. No distante século XVI, o dramaturgo, em O Mercador de Veneza, colocou no centro da trama um contrato de crédito que liga dois dos personagens principais, Shylock, um agiota e credor nessa operação de crédito, e Antônio, o fiador do contrato. Antônio era um rico comerciante veneziano, mas não tinha capital disponível naquele momento, uma vez que sua frota de navios e mercadorias estava em viagem, com retorno previsto para antes do vencimento do contrato. Como resultado de uma mistura de preconceito e ressentimento, Shylock propõe, como garantia de pagamento pelo empréstimo, uma libra da carne de Antônio. O comerciante, confiante em sua capacidade de pagamento, aceita. Contrato assinado por ambas as partes, algo muito sério na Veneza do século XVI.
Eis que o inesperado ocorre. Antônio perde sua frota de navios em alto mar e se vê impossibilitado de pagar a dívida. É hora, portanto, da execução da mórbida garantia. O caso vai parar no tribunal do Duque de Veneza, que funcionava como o Judiciário à época. Sensibilizados pela situação de Antônio, vários intercedem em seu favor, propondo o pagamento da dívida, mas Shylock, ainda movido pelo ressentimento, recusa as ofertas e exige o cumprimento do contrato. O Duque, por sua vez, divide-se entre a simpatia por Antônio e o receio de um precedente de quebra contratual. Afinal, ali imperava o velho princípio de pacta sunt servanda, ou, em bom português, “os acordos devem ser cumpridos”.
Muita coisa mudou de lá para cá. Não se pode utilizar a vida de uma pessoa – ou uma libra de sua carne – como garantia para a execução de um contrato, ao menos não nos contratos formais, protegidos pela nossa ordem jurídica. Também hoje nossos magistrados parecem menos apegados ao princípio de pacta sunt servanda, tão central na obra de Shakespeare, estando abertos, muitas vezes, a modificar os termos dos contratos em suas decisões, seja pelo cumprimento do princípio legal de função social do contrato, seja pela orientação para promoção de justiça social. Mas uma coisa continua a mesma. A relação entre o mercado de crédito e o Judiciário continua sendo um problema de primeira ordem.
É natural que assim seja. A relação entre credor e devedor em um empréstimo é uma ligação entre o presente e o futuro, este sujeito às incertezas e intempéries da vida. Muitas vezes, o empréstimo serve ao propósito de criar mais valor, ao fundear um investimento. Mas este é carregado de riscos e os azares podem transformar em pó o valor inicialmente investido. Por isso garantias são tão importantes. E também por isso a intermediação financeira requer mecanismos eficientes de enforcement de contratos. Não é de espantar, portanto, que o Duque de Veneza, cidade-símbolo do desenvolvimento econômico à época, tivesse tanto receio de dar guarida a um precedente de quebra contratual.
Na academia, a relação entre crédito e Judiciário ganhou tração apenas no final dos anos 1990, quando quatro autores – La Porta, Lopez-Silanes, Shleifer e Vishny – publicaram o clássico Law and Finance. O artigo argumentava que as características do Judiciário, ali demarcadas pela origem do sistema jurídico, tinham efeito sobre o enforcement de contratos, sobre a garantia de direitos de propriedade e diversas outras dimensões com efeitos relevantes para o desenvolvimento do mercado de crédito. De uma proposição inicial em um plano muito geral, a literatura evoluiu para analisar os detalhes dessa relação, em diversos contextos econômicos e institucionais distintos.
Por aqui, no Brasil, o tema cresceu nos anos 2000. Armando Castelar inaugurou a agenda ao publicar uma pesquisa com magistrados, com o propósito de aferir, entre outras coisas, o quão aderentes eram eles ao princípio de pacta sunt servanda. Na sequência, Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara-Resende publicam artigo em que atribuem às altas taxas de juros no Brasil ao que chamaram de incerteza jurisdicional e a um alegado viés anticredor que preponderaria no Judiciário brasileiro. Foi um artigo muito influente no debate econômico, mas, como os autores reconhecem, tratava-se de uma conjectura, ainda sem base empírica. E, por isso, todos nós temos o direito de dizer algo do tipo: “Sério mesmo? Você realmente acredita que a taxa de juros no Brasil é alta porque o Judiciário é sistematicamente contra os bancos?”.
A literatura que se seguiu foi predominantemente empírica. Em artigo derivado da tese de doutorado da minha colega de coluna, Luciana Yeung, foi possível ver que não há um viés sistemático nas decisões dos ministros do Superior Tribunal de Justiça em contratos de crédito. Há, é claro, um custo muito elevado de depender do Judiciário para a solução de conflitos em contratos de crédito, mas esse decorre principalmente do tempo para a decisão e da incerteza, havendo variabilidade no padrão de decisão dos magistrados.
Se a conjectura levantada por Arida, Bacha e Lara-Resende era da relação causal entre viés anticredor e taxa de juros, Bruno Salama, jurista e conhecedor do processo de fundamentação da decisão judicial, fez a pergunta inversa: será que a magnitude da taxa de juros afeta o resultado do julgamento? Seu artigo traz algumas evidências de que juízes tendem a ser mais fiéis aos termos do contrato se as taxas de juros são mais baixas. Quando são mais altas, tendem a ser mais anticredores. Vejam como a vida é mais complicada do que parece. Se, de um lado, o Judiciário pode explicar taxas de juros mais altas, de outro, essas mesmas taxas afetam a propensão de um juiz intervir no contrato.
As decisões judiciais em contratos de crédito têm efeitos que vão além da taxa de juros. Pedro Amoni, doutorando em Economia na FGV-SP, em sua tese de doutorado ainda não publicada, analisou 350 mil sentenças do Tribunal de Justiça de São Paulo, procurando identificar o efeito de decisões favoráveis ao devedor sobre o comportamento dos bancos e de empresas tomadoras de empréstimos. Os resultados indicam que decisões favoráveis ao devedor implicam uma redução do crédito e o aumento da taxa de juros por parte dos bancos que foram desfavorecidos na decisão judicial. Esse efeito é transmitido para o chamado “mundo real”, sobretudo para as pequenas empresas, cujo acesso a crédito se reduz. No final das contas, a decisão pró-devedor acaba não sendo tão boa para o próprio devedor.
Na história de Shakespeare, Shylock se deu mal. Representando a defesa de Antônio, uma jovem brilhante, que teve de se disfarçar de homem para exercer a advocacia, encontra uma brecha no contrato. Era incontroverso que Shylock tinha direito a uma libra da carne de Antônio, mas não poderia derramar uma gota do sangue de um cidadão de Veneza, o que implicaria, segundo a lei local, uma punição ainda maior. Ao final, não apenas Antônio vive, como o tribunal, absolutamente viesado em seu favor, decide expropriar o patrimônio de Shylock, um judeu, por atentar contra a vida de um cristão de Veneza. A ficção para aí. Mas, se fosse real, seria interessante ver quais teriam sido os efeitos da decisão do Duque sobre a taxa de juros e a disponibilidade de crédito na antiga Veneza.