Diversas vezes nesta coluna já tive oportunidade de discorrer sobre os relevantes achados da economia comportamental. De uma maneira sintética, essa recente corrente da ciência econômica, analisada com um enfoque da psicologia, evidencia que as decisões humanas frequentemente se desviam dos modelos racionais devido a limitações cognitivas e vieses sistemáticos na tomada de decisão – algo até então pouco considerado pelos economistas clássicos. A consequência desses desvios é que, embora previsíveis, impactam nas escolhas individuais e coletivas levando muitas vezes a resultados não desejáveis, ou seja, a resultados ineficientes. Daí resulta que alguns autores usam isso como justificativa para intervenções estatais que busquem corrigir tais falhas na racionalidade da escolha.
É nesse contexto que surge o conceito de “paternalismo libertário”. Ele está associado com propostas do uso de nudges (literalmente traduzido do inglês como “cutucões”) para influenciar de maneira sutil e não coercitiva as decisões das pessoas, no sentido de “empurrá-las” a fazerem a escolha que seria a racional, aquela que geraria maiores ganhos para a sociedade ou para os próprios indivíduos. Apresentar a escolha de forma que as alternativas mais eficientes sejam destacadas e favorecidas, mas sem restringir a liberdade de quem escolhe, exemplifica essa abordagem. Por exemplo, a adoção de sistemas opt-out para doação de órgãos ilustra como políticas públicas podem estimular comportamentos desejáveis sem imposições diretas. Nesse caso, cidadãos precisam explicitar quando decidem não ser doadores de órgãos, ao contrário de um sistema de opt in, no qual a declaração deve acontecer quando a escolha é para ser doador. Comprovadamente, países que optam pelo sistema de opt out têm níveis de doação de órgãos muito altos do que os segundos.
No entanto, o conceito de paternalismo libertário gera uma grande controvérsia na literatura econômica e filosófica. A discussão centra na pergunta “seria o ‘paternalismo libertário’ um oximoro?”. Tal questão é uma reação a um artigo de Cass Sunstein e Richard Thaler, dois grandes proponentes da economia comportamental (o segundo foi ganhador do Prêmio Nobel por seus estudos nessa área), e defensores de políticas públicas que se utilizam de nudges para gerar resultados desejados. O artigo de 2003 tinha como título Libertarian Paternalism is not an oxymoron (“O paternalismo libertário não é um oximoro”).
A ideia por trás da polêmica é que os dois conceitos – paternalismo e libertarianismo – são filosoficamente contraditórios e fazem parte praticamente de dois extremos opostos na antiga – mas atualíssima – discussão a respeito de qual é o papel do Estado sobre as escolhas dos cidadãos em uma sociedade democrática.
Correndo o risco de resumir excessivamente uma ideia complexa (tema para uma eventual coluna no futuro), poderíamos apresentar o libertarianismo como uma corrente que advoga por um sistema político de Estado mínimo, com a “única” função de garantir a justiça, prover a segurança pública, garantir os direitos humanos individuais, a defesa das liberdades e das regras dos contratos*. Diferentemente dos liberais clássicos, que defendem a intervenção estatal para garantir resultados que sejam socialmente desejáveis, a preocupação dos libertários é com a garantia absoluta das liberdades individuais, contanto que não gerem danos explícitos a outros (mas sem necessariamente garantir a maximização de benefícios sociais, que é a preocupação dos economistas liberais).
Por outro lado, “paternalismo” vem da imagem óbvia de genitores (pai ou mãe) protegendo sua prole contra os “perigos do mundo”, ou mesmo tendo que ensinar a ela o que é certo e errado. Nesse processo, são necessárias lições duras, “broncas”, castigos, disciplina. Não é exatamente um processo de consagração das liberdades individuais dos filhos…
Por isso, alguns notáveis economistas e juristas, dentre eles, Gary Becker e Richard Posner, reagiram ao trabalho de Sunstein e Thaler, e afirmaram categoricamente que “paternalismo libertário” é efetivamente um oximoro. Ressaltam os inconvenientes dessa proposta, não somente no plano das ideias, mas sobretudo em seu uso para as políticas públicas.
Nas palavras de Becker, “o libertarianismo [do qual ele não é adepto] não assume que as pessoas adultas nunca cometem erros [em suas decisões] … Ao invés disso, assume que pessoas adultas muito tipicamente conhecem seus interesses melhor do que oficiais do governo, professores universitários, ou qualquer outra pessoa” (tradução livre, ênfases minhas). Outra limitação relacionada a esse fato, segundo o autor, está na quase impossibilidade de distinguir o que seria uma política pública baseada no “paternalismo libertário” de outra que seria baseada em um “paternalismo puro”. De acordo com seus proponentes, o primeiro seria concretamente justificável, enquanto o segundo, não. Mas qual é o critério objetivo para separar um do outro? No mundo real e presente, essa é uma reflexão que muitos têm feito: até onde os argumentos do Estado de “estar fazendo o que é melhor para o bem social [porque as pessoas não conseguem fazê-lo por si sós] ” são de fato genuínos e justificados?
Na visão desta colunista, a passagem abaixo de Becker resume as preocupações com o conceito:
“O paternalismo libertário frequentemente envolve simplesmente substituir as crenças de um intelectual, burocrata ou político sobre o que deveria ser feito com o tempo e o dinheiro das pessoas pelo julgamento daquelas que escolhem como usar suas próprias rendas e tempo. … Mesmo os governantes com as melhores intenções devem ser considerados sujeitos às mesmas limitações de racionalidade, falta de autocontrole, miopia em relação ao futuro e outros defeitos cognitivos que supostamente afetam as escolhas de nós, indivíduos comuns. Alguém poderia minimamente acreditar que esses governantes promoverão melhor os interesses dos indivíduos do que esses próprios o fariam?” (tradução livre, ênfases minhas). Para muitos, essa pretensão de moldar comportamentos humanos por meio de burocratas não pode ser outra coisa que não traços de sistemas autoritários*.
Faço também um gancho à discussão da última coluna deste espaço (“Public Choice: lucidez para entender a política como ela realmente é”, 30.out.2024). Que isso sirva como reflexão para todos nós no mundo de hoje.Referências:
Gary Becker. “Libertarian Paternalism – a critique”, in Becker, Gary & Posner, Richard. Uncommon Sense: Economic Insights, from Marriage to Terrorism. The University of Chicago Press, pp. 147-150, 2009.
Cass Sunstein & Richard Thaler. “Libertarian Paternalism Is Not an Oxymoron”, University of Chicago Law Review, pp. 1159-1202, 2003.
*Agradeço à Profa. Amanda Flavio de Oliveira, da Universidade de Brasília (UnB), pelas trocas e insights na redação desta coluna, sobretudo nas passagens aqui marcadas.
Luciana Yeung é Professora Associada do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora de “O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica”, “Introdução à Análise Econômica do Direito” (juntamente com Bradson Camelo) e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de artigos científicos e aplicados e capítulos de livro, todos na área do Direito & Economia.