Trenzinho caipira
O Filé Arcesp, um clássico da antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro, volta a ser preparado nos trilhos
Se dependesse dos mais nostálgicos, como o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão, aquele prato seria declarado “comida tradicional de São Paulo”. Uma legião de paulistas pensa igual. Eles o saboreavam a bordo dos trens confortáveis da extinta Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF ou CP). Nunca conseguiram esquecê-lo. “Até hoje lembro do seu aroma”, diz Loyola Brandão, filho de ferroviário e nascido em Araraquara, a 290 quilômetros da capital paulista. “Era um bife muito grande, com tomate, cebola e vinha acompanhado de arroz”.

Refere-se ao apetitoso Filé Arcesp, feito nos trilhos para alimentar os caixeiros-viajantes das décadas de 1940, 50 e 60, homens que usavam terno e gravata, às vezes chapéu, carregavam uma pasta de couro com os catálogos dos produtos à venda e um bloco para anotar os pedidos, porém achavam cara a comida do trem da CP. O nome do prato os homenageava. Arcesp era a sigla da Associação dos Representantes Comerciais do Estado de São Paulo.
Sucesso da gastronomia ferroviária, o filé até hoje provoca suspiros de saudades em uma infinidade de pessoas. A CP desapareceu em 1961, ao ser estatizada e, dez anos depois, anexada à também governamental FEPASA – Ferrovia Paulista, que por sua vez foi extinta em 1998, incorporada à Rede Ferroviária Federal. A receita original do Filé Arcesp se extraviou. Mas é recuperável com os testemunhos dos antigos viajantes.
Primeiro, a carne frita na frigideira até alcançar o ponto desejado. Depois, vai para um recipiente mantido em local aquecido, a fim de não esfriar. Então, a frigideira volta ao fogo para refogar rodelas de cebola. A seguir, acrescenta-se cenoura, batata, ervilha e tomate. Por último, o filé retorna à frigideira com a finalidade de incorporar o sabor do molho. Havia um segredo. Nunca se lavava a frigideira, aproveitava-se o molho residual no cozimento dos legumes.
Pois o Filé Arcesp está de volta aos trilhos, embora circunstancialmente. Pode ser saboreado em dias marcados, a bordo do Expresso Mogiana, um trem especial que percorre os 34 quilômetros entre Campinas e Jaguariúna, no interior de São Paulo, promovendo uma viagem turístico-nostálgica. Puxado por uma locomotiva histórica restaurada, comemora os 40 anos de fundação da ABPF – Associação Brasileira de Preservação Ferroviária.
Nunca existiu no Brasil uma companhia ferroviária como a CP. Fundada em 1894, por fazendeiros e investidores, para escoar o café plantado no estado e facilitar a circulação das pessoas, seus trens saíam da Estação da Luz, na capital paulista, e paravam em diversas cidades. O primeiro trecho da linha tronco, inaugurado em 1872, ligou Jundiaí a Campinas.
Seu desaparecimento coincidiu com o desinteresse pelo transporte ferroviário no Brasil. Ignorando as lições da Europa e de outros lugares, onde os trens são ainda hoje rentáveis e modernos, decretamos a sua extinção. Um país “moderno” como o nosso, dizia-se, devia privilegiar o transporte rodoviário. Viviamos a euforia desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubistchek, patrono da indústria automobilística nacional.
O trem de passageiros mais importante da CP era o “R” (Rápido) ou “Azul” cujo nível de qualidade ainda não foi igualado no país. Sua pontualidade era tão grande que as pessoas podiam acertar o relógio quando ele parava na estação. Compunha-se de carros de três tipos: Pullman, Primeira e Segunda Classe, além do destinado ao restaurante e o do dormitório ou leito. Um deles superava em requinte os demais. Era o Pullman, de elite, que transportava os viajantes endinheirados. Foi construído em aço de chapa dupla, a fim de eliminar o ruído externo.
Dispunha de poltronas giratórias, luminárias individuais, janelas panorâmicas retangulares e ar condicionado, uma exclusividade na época. A CP o trouxe dos Estados Unidos. Vieram três vagões iguais, dotados desses confortos. Ainda hoje os ônibus do transporte rodoviário, tanto em São Paulo como no Brasil, não superaram o luxo do Pullman. No carro restaurante, os homens não entravam sem paletó e ali se servia o Filé Arcesp.
Embora não fizesse jus ao apelido, por ser de primeiro mundo, poderiamos chamar afetuosamente o “Trem R” ou “Trem Azul” de “O Trenzinho Caipira”. Pieguices à parte, evocariamos simultaneamente o seu pedigree paulista e a genial composição homônima de Heitor Villa-Lobos, parte da peça Bachianas Brasileiras nº 2. Com os instrumentos da orquestra, a obra imita sonoramente o movimento de uma locomotiva.
“O Trenzinho Caipira” recebeu letra inspirada do poeta Ferreira Gullar: “Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar/ Lá vai ciranda e destino/ Cidade e noite a girar / Lá vai o trem sem destino/ Pro dia novo encontrar/ Correndo vai pela terra…/ Vai pela serra…/ Vai pelo mar…” Uma das melhores interpretações é do cantor Ney Matogrosso:
P.S. Quem precisar matar a saudade dos trens da CP, deve ouvir “O Trenzinho Caipira”, de Heitor Villa-Lobos, obviamente saboreando o Filé Arcesp.
RECEITA – FILÉ ARCESP – Rende 2 porções
INGREDIENTES
- 2 bifes de filé mignon com cerca de 150g cada
- 3 colheres (sopa) de manteiga
- 1 colher (sopa) de azeite de oliva
- 3 cebolas grandes fatiadas finamente
- 1/2 xícara (chá) de cenouras novas e tenras, cortadas em cubos
- 1 xícara (chá) de batatas novas e tenras, descascadas e cortadas em cubos
- 1 xícara (chá) de ervilhas tenras
- 1 tomate maduro sem pele e sem sementes cortado em rodelas
- Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
ACOMPANHAMENTO OPCIONAL:
- Arroz branco
PREPARO
1. Em uma frigideira grande, aqueça a manteiga com o azeite.
2. Coloque os filés e polvilhe a parte superior de cada um deles com sal.
3. Espere dourar a parte de baixo, vire e polvilhe o outro lado com sal.
4. Deixe-os no fogo até o ponto desejado, transfira-os para uma travessa e reserve-os em lugar aquecido.
5. Retorne a frigideira ao fogo, sem lavar, colocando nela as rodelas de cebola. Misture-as bem, até dourarem. Se necessário, junte uma ou mais colheres (sopa) de água.
6. Adicione as cenouras, depois as batatas, as ervilhas e o tomate. Tempere com sal, pimenta-do-reino e refogue os legumes na frigideira tampada, deixando-os ao dente.
7. Retorne os filés à frigideira, rapidamente, para que incorporem o sabor do molho.
8. Coloque-os nos pratos e sirva imediatamente.