O quindim da discórdia
Porque esse doce tão amado pelos brasileiros é, na verdade, quase um puro-sangue português
Volta e meia alguém reacende a discussão sobre o DNA do quindim – um dos doces mais apreciados no Brasil. Leva gemas de ovos, açúcar, manteiga e coco ralado. Quanto mais amarelo, brilhante e cremoso, melhor; na parte debaixo, o coco fica concentrado, úmido e ligeiramente crocante. O debate alcança as redes sociais. O quindim seria um doce afro-baiano, como sustentam alguns? Ou resultou da adaptação de uma receita da veterana doçaria portuguesa, como garantem outros? Não se chega ao consenso.
Na verdade, trata-se de doce com família numerosa em Portugal. Um dos seus irmãos se chama brisas do lis (antes grafado com z), também conhecido por brisas de Santa Ana. É típico do distrito de Leiria, entre a Beira Litoral e a Estremadura. Lis é o nome do rio que atravessa a cidade. Há doces semelhantes em Beja e Évora, no Alentejo, em Azeitão e Cascais, na Costa de Lisboa, que também poderiam ter inspirado o quindim. Todos foram criados em conventos e mosteiros. Brisas do lis difere do quindim por levar amêndoas picadas, em vez do coco ralado.
A troca do ingrediente se explica. Quando chegaram ao Brasil, no século 16, os portugueses tiveram que mudar várias receitas de cozinha, porque faltavam produtos iguais aos da sua terra natal. No caso do quindim, não encontraram a amêndoa européia recomendada originalmente. Por isso recorreram ao coco. Em 1500, ano da descoberta oficial do Brasil, sequer havia coqueiro em nosso país. Os portugueses o plantaram algum tempo depois no litoral da Bahia, trazendo mudas de Cabo Verde, que por sua vez as recebera da Índia ou do Sri Lanka. Em 1612, o coqueiro já se espalhava por todo o litoral baiano.
O quindim não foi a única receita lusitana adaptada no Brasil. A própria cozinha afro-baiana sofreu essa aculturação. Logo que desembarcaram, nossos colonizadores escravizaram os índios e entregaram o preparo da sua comida às mulheres nativas, as cunhãs. Foram elas que, a serviço das casas senhoriais, passaram a ajustar as receitas lusitanas aos ingredientes nacionais. Mas os índios não suportaram a vida sedentária e acabaram dispensados do trabalho forçado. Claro, as cunhãs os acompanharam.
Daí os portugueses trazerem escravos da África Ocidental, ampla região dominada pelo grupo étnico e linguístico dos iorubanos. No Brasil, eles foram distribuídos nos engenhos e plantações. Paralelamente, o controle dos fogões da casa grande ficou com as mucamas – negras de estimação, incumbidas da cozinha e dos serviços domésticos. Então, as escravas realizaram um prodígio culinário.
Os africanos que vieram se encontravam em estágio cultural superior ao dos índios, mas sua cozinha era atrasada. Baseava-se no cozido, no tostado e no assado. Não recorria à fritura, nem à gordura, utilizava a manteiga como cosmético, para untar ou dar brilho à pele. Os ovos serviam mais de remédio do que alimento. A cozinha africana ignorava o sal marinho. O único disponível era extraído das cinzas de palmeiras. Como não conheciam o açúcar de cana, os africanos empregavam o mel para fazer doces elementares.
Em compensação, as mucamas se revelaram grandes cozinheiras. Mais criativas do que as portuguesas, foram trocando um ingrediente pelo outro. O fato pode ser comprovado nas 479 páginas do livro “A Cozinha Africana no Brasil” (Press Color, Salvador, 2006), de Guilherme Radel, professor emérito da Universidade Federal da Bahia. Talentosas e habilidosas, as mucamas prosseguiram a adaptação da culinária na casa grande e depois no sobrado dos portugueses e seus descendentes das primeiras gerações.
Sobram exemplos ilustrativos. O vatapá deriva da açorda lusitana. Substituiu o leite de vaca pelo de coco, o azeite de oliva pelo de dendê, os temperos portugueses pelas especiarias baianas. “Até o modo de fazer é igual”, observa Radel. “As duas receitas incorporam pão”. O caruru e o efó, acrescenta Radel, não passam do esparregado lusitano. Os ensopados de peixe e de marisco viraram moqueca.
Os únicos pratos afro-baianos que têm correspondentes na África são o abará (bolinho de feijão-fradinho moído embrulhado em folha de bananeira) e o acarajé (bolinho de massa de feijão-fradinho, frito em azeite de dendê). Este, suspeita Radel, pode ter sido levado pelos negros que conquistaram o direito de retornar à África. O professor emérito é categórico: “Não houve uma contribuição da África à cozinha baiana, como muitos supõem, mas sim das negras, quando já estavam aqui”.
O quindim nasceu no mesmo leito esplêndido. É quase um puro-sangue português, embora tenha sido batizado pelos escravos. O nome talvez derive do iorubano. Significa dengo, meiguice, encanto. Antigamente, chamava-se também quindim de iaiá. Foi mais uma contribuição africana. Íaiá era o tratamento que os escravos davam às meninas e às moças da casa grande. Há uma samba clássico de Ary Barroso intitulado “Os Quindins de Iaiá”.
Fez sucesso internacional na década de 1940, cantado por Aurora Miranda no filme da “The Three Caballeros”, da Walt Disney Productions. Mais recentemente, o sanfoneiro e cantor Dominguinhos o gravou magistralmente: https://www.vagalume.com.br/dominguinhos/os-quindins-de-iaia.html
Entretanto, sem a menor dúvida, a receita do quindim descende da doçaria conventual portuguesa, desenvolvida a partir do século 15. Naquele tempo, as instituições religiosas desfrutavam da proteção de reis e nobres, recebiam foros, mercês e padroados garantidores de uma subsistência folgada.
O aparecimento da maravilhosa doçaria conventual coincidiu com o período no qual as instituições religiosas lusitanas tiveram açúcar à vontade, graças às plantações e engenhos de cana no Arquipélago da Madeira, que depois se transferiram para o Brasil. A prodigalidade originou um enorme acervo de receitas, sobretudo de ovos, pois os mosteiros recebiam gemas de graça dos produtores de vinho. Os vinhateiros aproveitavam apenas as claras. Usavam-nas na clarificação da bebida, ou seja, no processo de retirada das impurezas.
Como as mucamas eram quase sempre filhas dos orixás – divindades cultuadas pelos iorubas da atual Nigéria, Benin e Togo, trazidas ao Brasil pelos escravos – levaram seus alimentos para os terreiros das religiões de matriz africana. O quindim foi oferecido a Oxum, orixá feminino da beleza, amor, prosperidade, riqueza, das águas doces, rios e cachoeiras, cultuada no candomblé e na umbanda. Qual a razão? É feito de ovos, tem cor amarela, apresenta-se doce. São elementos que fazem parte do culto a Oxum.
Com todo o respeito aos devotos das religiões afro-brasileiras, o jornalista e poeta gaúcho Mário Quintana também gostaria que o quindim lhe fosse oferecido, tamanha a veneração pelo doce. Saboreava-o com café forte, sem açúcar, na lanchonete do jornal “Correio do Povo”, de Porto Alegre, onde atuava como colunista da página de cultura. O autor de “O Aprendiz de Feiticeiro”, lançado em 1950, e de vários livros notáveis, preferia o quindim de tamanho pequeno, considerado mais tradicional, não o grande, o quindão. O fanatismo rendeu até uma brincadeira. Ele acabou apelidado de Mário Quindim.
RECEITA QUINDIM
Rende cerca de 20 unidades
INGREDIENTES
- 300g de açúcar
- 100g de manteiga em temperatura ambiente
- 13 gemas de ovos
- 200g de coco ralado na hora
- Manteiga para untar as forminhas
PREPARO
1. Em uma tigela, coloque o açúcar, a manteiga e misture lentamente, de preferência com as mãos (o calor da mão facilita a incorporação dos ingredientes), até obter um creme homogêneo.
2. Junte as gemas, uma a uma, misturando a cada adição. Coloque o coco e misture novamente.
3. Deixe o creme descansar por 15 minutos, em temperatura ambiente.
4. Enquanto isso, unte as forminhas com manteiga, despeje o creme dentro e asse os quindins no forno quente, preaquecido a 200°C, em banho-maria, com a água já fervendo, por cerca de 50 minutos.
5. Para verificar o ponto de cozimento, enfie um palito na massa. Se sair seco, está pronto.
6. Desenforme os quindins frios, se necessário passando uma faquinha fina em volta das forminhas.