O cozido de Dom Quixote
Com uma antiga receita de cozinha, os espanhóis recordam os quatrocentos anos da morte do genial escritor Miguel de Cervantes

Quatro séculos se passaram da morte do escritor castelhano Miguel de Cervantes (1547-1616) e, apesar da revolução que virou do avesso a gastronomia da Espanha, a cozinha popular do centro daquele país continua praticamente inalterada. Em alguns “pueblos” é a mesma que aparece nas páginas de “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes, lançado em 1605, uma das obras-primas do gênero humano, se não for a maior. O centro da Espanha é a região percorrida pelo cavaleiro andante do livro. Poucos capítulos não trazem referências à comida da região.
Dom Quixote vivia em um vilarejo de Castela e La Mancha, nome atual da vasta e ensolarada planície ao sul da capital espanhola. Por ler demais romances de cavalaria, de grande popularidade na Europa entre os séculos 15 e 17, perdeu completamente o juízo. Julgando-se um dos heróis da ficção, decide imitá-los. Então, começa uma desvairada expedição pelo interior de Castela e La Mancha, bem como de Aragão e da Catalunha.
Veste uma armadura anacrônica e monta no Rocinante, um cavalo tão magro quanto ele. É acompanhado pelo fiel escudeiro, o gordo e barrigudo Sancho Pança, empoleirado em um burro. Apesar de realista, aceita os delírios do chefe, a quem começou a seguir depois que lhe prometeu uma ilha para governar. Os dois se envolvem em aventuras atiçadas pela imaginação de Dom Quixote. Mas as fantasias são desmentidas pela realidade implacável. Um dos pratos mencionados no livro de Cervantes é a olla podrida – o substancioso cozido castelhano à base de grão-de-bico, carne bovina e de porco, orelha e pé de suíno, chouriço convencional e de sangue, toucinho defumado, presunto, cenoura, nabo, cebola, alho, pimenta e sal. Variações desprezadas pelos tradicionalistas agora acrescentam batata. Trata-se de uma refeição completa.
Cervantes põe na boca de Sancho este comentário: “Aquele grande prato que está ali adiante parece ser olla podrida, que pela diversidade de coisas existentes nas tais ollas podridas, não poderei deixar de topar com alguma que me seja de gosto e proveito”. Compreensivelmente, é uma das duas principais atrações gastronômicas das festas espanholas que lembram em 2016 os quatrocentos anos da morte de Cervantes – a outra se chama duelos y quebrantos, um torpedo católico preparado na frigideira com presunto, toucinho, miolos de cordeiro, chouriço e ovos batidos.
Mesmo tendo um nome destruidor do apetite, a olla podrida consegue ser reconfortante, além de ideal para os dias frios como os que enfrentamos no inverno. Os espanhóis, porém, nunca estranharam a designação. Olla significa panela; e podrida não vem de podre, mas do castelhano poder, pois antigamente só as pessoas abonadas podiam comprar todos os ingredientes de uma receita rica. Outra versão sustenta que o nome se deveria ao cozimento lento, tão demorado que eles ficam “com textura de estragados”.
Prato antiquíssimo, com raízes na Antiguidade, a olla podrida tem diversos similares na Espanha: cocido madrileño, puchero, pringá andaluza e pilota catalana. É servida em “tres vuelcos” (três vezes), conforme a hieraquia do jogo de xadrez. Eis a ordem de comer: “sota, caballo y rei”, ou seja, peão, cavalo e rei; primeiro o caldo, a seguir os legumes, por último a carne.
Outros países preparam receitas assemelhadas. Na França, faz-se potée, pot-au-feu e pot-pourri; na Itália, bollito misto; na Hungria, goulash; na Grécia, stifado; no Marrocos, tajine; no Japão, oden e sukiyaki; entre os judeus, adafina (sefaradim) e cholent (ashkenazim). Em Portugal e no Brasil, há cozido ou fervido (RS), puchero ou pucherada (MT e MS).
Na segunda metade do século 19, a olla podrida quase desapareceu da Espanha. Depois, recuperou o prestígio. Hoje, é amplamente encontrada em Castela e La Mancha e regiões adjacentes. Caso sumisse, teria sobrevivido na França, onde foi introduzida na corte de Luís XIII pela mulher do rei, Ana de Áustria, filha de Filipe III da Espanha. Ali recebeu o nome de pot-pourri, palavra que batizava a mistura de coisas, sobretudo de ervas e raízes. Atualmente, pot-pourri ainda designa uma miscelânea de trechos de canções.
O mais notório fã do prato foi o beneditino Clemente VI, quarto papa de Avinhão, cidade no sul da França. Surpreendido por um cardeal enquanto sorvia um pote de cozido na Quaresma, que para os católicos do passado era um período obrigatório de jejum e abstinência de carne, o pontífice respondeu: “Deus também está nos cozidos”. Dom Quixote seguramente não cometeria esse pecado gastronômico.
RECEITA
OLLA PODRIDA
Rende 6 porções
INGREDIENTES
- 300g de grão-de-bico seco
- 250g de carne de vaca
- 500g de entrecosto de porco
- 1 chispe (pé do porco)
- 1 orelha de porco
- 100g de toucinho defumado (numa só peça)
- 100g de presunto curado (numa só peça)
- 1 cebola espetada com 1 folha de louro e 2 cravos
- 3 cenouras cortadas em rodelas
- 3 nabos cortados em rodelas
- 2 chouriços de preferência picantes
- 2 chouriços de sangue (morcelas)
- 2 dentes de alho
- 1 colher (sopa) de banha
- Pimenta e sal a gosto
PREPARO
1. Demolhe os grãos-de-bico durante a noite, em bastante água. No dia seguinte, leve-os ao fogo, em uma panela grande, com a água em que ficaram de molho.
2. Junte a carne de vaca, o entrecosto, o chispe, a orelha de porco, o toucinho, o presunto e regue com mais água, de maneira a cobrir os ingredientes.
3. Incorpore a cebola e cozinhe tudo por cerca de 1 hora. Adicione então as cenouras, os nabos e os chouriços. Pise o alho com um pouco de sal e junte-o à panela. Coloque a banha e tempere com sal e pimenta.
4. Após uns 15 minutos em fogo brando, retire da panela a carne, o toucinho, o presunto, os chouriços, o entrecôte, o chispe e corte tudo em pedaços.
5. Para aquecer, retorne com as carnes à panela e tempere com sal e pimenta.
6.
Coloque o caldo, os legumes e as carnes em recipientes separados, para servir nessa ordem.