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Dias Lopes

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O centenário da caipirinha

Surgido em consequência da gripe espanhola, o drinque brasileiro estaria completando 100 anos de idade ou se aproximando dessa celebração

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 4 jun 2024, 17h41 - Publicado em 14 ago 2018, 19h11

A caipirinha virou drinque na esteira da gripe espanhola, cujo vírus se espalhou pelo mundo e chegou ao Brasil em setembro de 1918, com os passageiros do navio de luxo inglês Demerara. No ano seguinte, alastrou-se avassaladoramente no país. Matou 35 mil pessoas, entre as quais Rodrigues Alves, nosso 5º Presidente da República, antes de assumir o segundo mandato.

Se a gripe espanhola foi a origem, a caipirinha está completando 100 anos de idade ou, então, aproximando-se do centenário. Sua receita primitiva foi usada no interior de São Paulo para combater a pandemia mais letal que a humanidade já enfrentou. Serenada a calamidade, o drinque caiu no gosto do povo e se tornou popular em botequins e comemorações rurais.

Alguns atribuem a criação da caipirinha a um cidadão chamado Paulo Vieira, proprietário de terras no município paulista de Piracicaba, na Região Centro-Oeste do estado, a mesma de Americana e Santa Bárbara. Ele a teria ministrado pioneiramente, como remédio, aos camponeses que pegavam a gripe espanhola. Era uma beberagem que misturava cachaça, limão, alho e mel.

Ao cair no gosto público, a receita foi aprimorada, perdeu o alho e trocou o mel pelo açúcar de cana. Na verdade, o “medicamento” antigripal se converteu em dois drinques populares. Um seria a caipirinha, feita de preferência em copo individual, com cachaça, limão cortado em pedaços e macerado com açúcar de cana; outro, a batida de limão, à base de cachaça, suco de limão e açúcar, acondicionada em garrafa, guardada na geladeira e servida em vários copos.

Entretanto, no tempo da gripe espanhola, o drinque ainda não tinha esse nome. A palavra caipirinha é diminutivo feminino de caipira, adjetivo de dois gêneros de origem tupi, com o qual os habitantes da capital do estado denominaram o morador da roça, de pouca instrução, modos rudes e sem traquejo social. Portanto, tinha conotação pejorativa. Atualmente, ser caipira orgulha a gente do interior inclusive por batizar uma cultura rica.

Hoje, tende-se a acreditar que o drinque surgiu por intuição coletiva. Dona Maecira Pereira Araujo, atualmente com 100 anos de idade, moradora de Piracicaba, confirmou-nos essa convicção cinco anos atrás. “Sempre ouvi que todo o mundo no município tomava cachaça misturada com limão e mel para combater a gripe espanhola. Foi invenção anônima, não de uma pessoa”.

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A cachaça com limão já tinha sido utilizada contra outras enfermidades graves no Brasil. O portal Mapa da Cachaça, criado em 2010 pelos especialistas Felipe Jannuzzi, Gabriela Barreto e Eduardo Martins, registra um documento encontrado em Paraty, no Rio de Janeiro, segundo o qual as vítimas de uma epidemia de cólera que acometeu a região receberam “aguardente temperada com água, açúcar e limão, a fim de proibir que bebessem água simples”. (Registro de Ofícios da Câmera Municipal, página 139, 1856).

Foi seguramente na capital de São Paulo que a caipirinha se consagrou como drinque, ao ser aprimorada e batizada com o nome característico, exatamente por vir do interior. Expandindo-se a outras cidades, alcançou Santos entre o final da década de 1950 e início de 1960. Consumida principalmente pelos turistas da capital, virou bebida de praia. Era preparada das barracas sem nome a restaurantes e hotéis. Existe alguma bebida que combine melhor com o verão, o sol, a praia e a piscina?

Fez tanto sucesso em Santos que algumas pessoas a julgam inventada na cidade. Também já se acreditou que a caipirinha nasceu na região Noroeste, onde se encontram os municípios de Jaboticabal, Matão, Monte Alto, Pirangi e Taquaritinga. Até poderia fazer sentido. Sem levar em conta que no romance cômico-policial O Xangô de Baker Street, de Jô Soares, ficção ambientada no final do século XX, o médico Dr. Watson, que acompanha o detetive Sherlock Holmes na vinda ao Brasil, para resolver o mistério de um violino Stradivarius desaparecido, recebe no terreiro uma pomba-gira e inventa a caipirinha.

Analisando as pistas históricas, porém, convencemo-nos da paternidade de Piracicaba. Não por acaso, o município produz tradicionalmente os ingredientes da caipirinha: cachaça, limão e açúcar. Durante certo tempo o drinque permaneceu rejeitado pelas elites, até porque a cachaça ainda não dera o salto de qualidade atual. O primeiro local elegante a ter coragem de servi-lo foi o restaurante do Grand Hotel Ca’d’Oro, em São Paulo, aberto em 1953 pelo italiano Fabrizio Guzzoni (1920-2005).

O grande hoteleiro, restaurateur e expert em coquetelaria conheceu a caipirinha em um botequim da cidade, quando preparava a carta de bebidas do seu estabelecimento. Encontrou-a servida em copinho americano, com uma colherinha de alumínio para mexer os pedaços de limão e o açúcar. Apostando na originalidade e acreditando no futuro promissor do drinque, Fabrizio o aperfeiçoou.

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Primeiro, trocou o limão. Em vez do galego, escolheu o taiti. A mudança aconteceu por dois motivos. O galego tem muitas sementes e estava sendo atacado por uma praga que ameaçava a produção. O taiti não possui sementes, o que facilita a preparação da caipirinha, além de apresentar acidez média ideal para bebidas e sucos.

A seguir, Fabrizio passou a oferecer o drinque em copo padronizado, do tipo old-fashioned. Finalmente, acrescentou pedras de gelo, que ainda não levava, para realçar o frescor. Aproveitava-se de um avanço tecnológico: as geladeiras começavam a se firmar como eletrodoméstico obrigatório. A primeira construída no Brasil foi em 1947, na cidade de Brusque, em Santa Catarina.

Completada a reinterpretação, Fabrizio mandou seus maîtres venderem a caipirinha aos clientes, sobretudo aos estrangeiros interessados em atrações brasileiras. Giancarlo Bolla, um daqueles profissionais, mais tarde proprietário do restaurante paulistano La Tambouille, contou-nos essa história, antes de falecer em 2014. “A gente ficou constrangido em oferecer uma bebida com cachaça, um destilado prejudicado pela fama de trago de pobre, mas obedeceu porque não havia outro jeito”, disse.

“Seu Fabrizio era um homem decidido e no caso estava inteiramente certo. Os estrangeiros adoraram o drinque da maneira que ele apresentou e a concorrência imediatamente o imitou”. Giancarlo, que também era italiano, lembrava não ter gostado da caipirinha quando a conheceu. Teve a mesma reação negativa diante da feijoada. Mas mudou de opinião ao experimentar ambas as especialidades em uma mesma refeição. “A caipirinha abre o apetite”, afirmava. “E a acidez do limão ajuda a digerir a gordura da feijoada”.

Teriam bebido e aprovado a caipirinha no restaurante do Grand Hotel Ca’d’Oro hóspedes ilustres: os prêmios Nobel Linus Pauling (Química e Paz) e Franco Modigliani (Economia), o rei espanhol Juan Carlos I, o presidente francês François Mitterrand, os tenores Luciano Pavarotti e José Carreras, as sopranos Aprile Millo e Montserrat Caballé, o maestro Ricardo Muti, o arquiteto Oscar Niemeyer, os poetas Pablo Neruda e Mário Quintana, os ex-presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo, o pintor Di Cavalcanti, os escritores Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

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O Brasil quase perdeu o direito a usar o nome de caipirinha em seu drinque nacional. Isso só não aconteceu graças ao talentoso barman Derivan Ferreira de Souza, de São Paulo, autor de vários livros de coquetelaria, entre os quais Drinks de Mestre (Editora Ática, São Paulo, 1996) e A Coquetelaria ao Alcance de Todos (Edição Particular, São Paulo, 2011). No congresso da International Bartenders Association (IBA), que registra e oficializa bebidas alcoólicas do mundo, realizado em 1995 na cidade canadense de Toronto, ele conseguiu inscrevê-la na lista dos coquetéis oficiais.

Derrotou as pretensões de um grupo de suecos, motivados obviamente por interesses comerciais. Queriam registrar como caipirinha uma mistura de vodca e abacaxi. “Foi uma briga danada”, lembra Derivan. “Apresentei um dossiê provando a origem brasileira da caipirinha. Os argumentos se mostravam tão óbvios que não tive a menor dificuldade em prepará-lo. Mesmo assim, mais de uma dezena dos 50 jurados votaram a favor dos suecos”.

Conforme o Instituto Brasileiro da Cachaça (IBRAC), o Brasil tem capacidade instalada para fazer 1,2 bilhão de litros de cachaça por ano. O volume não leva em conta a produzida à margem da lei, ou melhor, sem pagar impostos, que talvez seja o dobro disso. Os principais estados produtores: São Paulo, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais e Paraíba.

A cachaça é exportada para cerca de oitenta países. Pelos cálculos do barman Derivan, 20% do mar de aguardente de cana-de-açúcar se destina à elaboração do drinque nacional. Se em cada copo forem colocados 50 ml de cachaça, como aconselha a receita, apenas com a cachaça oficial seriam preparadas 48 milhões de caipirinhas por ano em todos os continentes.

Desde 2009, o drinque que tanto nos orgulha se encontra regulamentado pelo Decreto nº 6.871, assinado por Luiz Inácio Lula da Silva, o 35º Presidente da República, notório fã da bebida. Segundo o texto, quando apresentar graduação alcoólica de 15% a 36% em volume, a 20º C, e for elaborada com cachaça, limão e açúcar, poderá ser denominada caipirinha. Permite-se a adição de água para a padronização da graduação alcoólica. A disciplina legal, porém, não impediu que sua família se multiplicasse prodigiosamente.

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Se mantivermos a cachaça e trocarmos o limão por uma combinação de frutas, temos a caipifrutas; o drinque também pode ser feito com tangerina (caipirinha), alecrim (caipicrim), capim-cheiroso (caipiroso) hortelã e gengibre (caipifresca), caju (caipiju),) e irá mudando o nome conforme o ingrediente. Usa-se ainda abacaxi, kiwi, lima-da-pérsia, morango, maracujá etc. Quando a cachaça é trocada por outro destilado, como por exemplo o rum, converte-se em caipiríssima; à base de vodca, transforma-se em caipirosca; com saquê, vira caipisaquê.

Os puristas torcem o nariz para essas variações, sem falar nas invenções radicais, como as caipirinhas de cerveja e vinho; e inclusive na paradoxal de Yakult, que nem álcool incorpora. Tudo bem, como sentencia o provérbio há gosto para tudo. Mas a única caipirinha puro-sangue leva cachaça, de preferência a branca, sem qualquer tipo de maturação, mais limão, açúcar de cana refinado, gelo e ponto final!

CAIPIRINHA

RENDE 1 DRINQUE

INGREDIENTES

.1 limão taiti, de casca fina

.2 colheres (bar) de açúcar de cana refinado

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.1 dose (50ml) de cachaça branca de boa qualidade

.Pedras de gelo

PREPARO

1.Segure o limão com o cabinho para cima e corte-o ao meio, de cima para baixo.

2.Retire fora o talinho branco do miolo.

3.Corte o limão em meias-luas.

4.Monte o drinque em um copo old-fashioned, colocando as fatias do limão com a polpa virada para cima. A seguir, acrescente o açúcar.

5. Pressione o limão com um macerador, evitando agredir demais a casca, para o drinque não ficar amargo.

6. Adicione a cachaça e mexa, misturando bem os ingredientes.

7.Complete com gelo e sirva.

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