HAJA MISSA!
Além de ser o campeão mundial no consumo de vinho per capita, o Vaticano tem hoje o papa que mais defendeu essa bebida
Confirmado: Francisco é mesmo o papa do vinho. Nenhum outro defendeu essa bebida com maior convicção, nos últimos séculos. Ele fez tantas declarações favoráveis ao vinho, em três anos de pontificado, que até ganhou o diploma de sócio honorário da Associação Italiana de Sommeliers, no ano passado. “Eu bebo vinho da Itália e de outros países”, admitiu o papa. “Mas só um pouco”. Na última quarta-feira, na audiência pública da Praça de São Pedro, em Roma, Francisco voltou ao assunto. Dirigindo-se a casais que completavam 50 anos de união, misturados aos 20 mil fiéis presentes, ensinou-os como festejar dignamente as bodas de ouro. “Não se pode encerrar uma festa de casamento bebendo chá”, afirmou. “Seria uma vergonha. O vinho é necessário para uma festa”.
Todos os papas têm apreciado o vinho, inclusive por tratar-se de uma bebida essencial à liturgia católica – é transformado simbolicamente em sangue de Cristo, durante a missa. Mas também o consomem por prazer. Se bem que Bento XVI, alemão da Baviera, continua a preferir a cerveja no seu cotidiano resignatário. Em 2015, comemorou o aniversário de 88 anos esgrimindo feliz uma caneca de vidro com um litro de pilsen germânica. Nos banquetes e recepções do seu reinado, porém, Bento XVI seguia o protocolo do Vaticano e brindava com champagne Moët&Chandon. Já o polonês João Paulo II demonstrava familiaridade com o vinho. No congresso dos enólogos italianos de 1984, em Roma, ele confessou preferir os brancos aromáticos e florais, feitos com a uva Gewurztraminer, na Alsácia-Lorena, e os derivados da casta Riesling, na Alemanha.
Mas nenhum outro papa dos últimos séculos fez declarações tão explícitas de apreço ao vinho quanto Francisco. Curiosamente, ele não parece ser um bebedor exigente. No seu tempo de Buenos Aires, o então cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio almoçava ou jantava com goles de um branco Torrontés qualquer ou de um tinto Malbec idem, elaborados no seu país natal. Ao visitar o Brasil em 2013, para a Jornada Mundial da Juventude, serviram-lhe em Aparecida, São Paulo, durante o almoço, um branco adocicado à base da uva Moscato, feito por uma adega de Jundiaí, no mesmo Estado. Ele bebeu um cálice tranquilamente, sem reclamar da pouca qualidade.
Embora Francisco seja o nosso papa do vinho, não tem a menor chance de bater Paulo III, eleito em 1534, na devoção a essa bebida. Seu antecessor contava até com os serviços de um sommelier, encarregado de escolher-lhe a bebida no palácio ou em viagem. Os vinhos da adega pontifícia ficavam separados para cada estação do ano. No verão, Paulo III apreciava um vinho tinto doce da Ligúria, acompanhado de frutas frescas banhadas em mel. Nas noites frias de inverno, tomava uma sopa quente de pão, harmonizada com um branco mais alcoólico.
Seguindo as ordens de Paulo III, o sommelier evitava servir-lhe o branco Greco della Torre, da região da Campanha, que o papa não aconselhava aos prelados, dizendo prestar-se mais aos humildes forneiros. Também um cavalheiro jamais devia beber vinho da Calabria, “para não se comportar mal com as senhoras”. O mesmo risco corria quem tomasse o Mangiaguerra de Nápoles, “capaz de incitar a luxúria das cortesãs”. Paulo III ainda se socorria do vinho como remédio. Usava o Malvasia em gargarejos, quando lhe doía a garganta. Já o vinho Greco di Somma, de Nápoles, reservava “para banhar os olhos de manhã”.
Mas, na época de Paulo III, a adega papal não passava de uma despensa de vinhos. Hoje, é ampla e moderna, com temperatura climatizada, inclusive porque acondiciona garrafas preciosas presenteadas a Francisco. As que não vão à mesa do pontífice são oferecidas aos cardeais e funcionários graduados do Vaticano. Por sinal, a população residente no pequeno Estado – 921 pessoas, segundo um censo – é a que mais consome vinho per capita no mundo: 54,78 litros por ano. Em segundo, terceiro e quarto lugares estão Luxemburgo, com 52,46 litros, França, com 45,70 e Itália, com 42,15. O Brasil ocupa o 96º lugar, bebendo anualmente apenas 1,79 litro per capita.
Na prática, a população do Vaticano consome 50.452 litros de vinho por ano. Evidentemente, parte desse volume se destina às missas. Se em cada celebração o oficiante consagrar 35 mililitros, como se estima, o vinho do Vaticano dá para rezar 1.841 missas por ano. Trata-se, porém, de um cálculo incorreto, pois entre a população há mulheres e funcionários leigos, que apenas assistem a liturgia. Haja missa!