O cume e a vertigem da queda: Uruguai e Brasil; Napoleão e Stálin
Quem poderá negar que a participação em uma Copa do Mundo representa o ápice da carreira de um jogador de futebol?
Quem poderá negar que a participação em uma Copa do Mundo representa o ápice da carreira de um jogador de futebol?
Ninguém deixaria de agarrar tal oportunidade com unhas e dentes.
Mas e quando o cume prenuncia a vertigem da queda?
Há três dias, em jogo válido pelas quartas de final da Copa do Mundo, o Uruguai foi derrotado pela França, em Níjni Novgorod, por 2 a 0.
No mesmo dia, só que em Samara, o Brasil foi derrotado pela Bélgica, por 2 a 1, em jogo também válido pelas quartas do Mundial.
Além de estarmos diante da eliminação de dois campeões mundiais sul-americanos por equipes europeias, as quedas de Uruguai e Brasil envolvem ainda outra confluência – a meu ver, mais tensa e essencial: os gols que, ao fim e ao cabo, foram decisivos para o desenlace das partidas decorreram de falhas de jogadores dos próprios times eliminados.
Já no segundo tempo, o Uruguai perdia por 1 a 0, mas, ainda assim, procurava agredir a França com raça. O 1 a 1 teria levado o jogo para a prorrogação ou mesmo para os pênaltis.
O gol brasileiro parecia maduro já antes dos 20 minutos do primeiro tempo, tamanha a voracidade com que atacávamos os belgas.
Aos 15 minutos do segundo tempo, o francês Griezmann disparou um chute perfeitamente defensável de fora da área, mas o goleiro uruguaio Muslera, como se tivesse mãos de alface, engoliu um frango clamoroso.
Aos 8 minutos do primeiro tempo, o zagueiro Thiago Silva enfiou uma bola na trave belga (bola na trave não altera o placar); 5 minutos depois, no entanto, após escanteio venenoso cobrado pelo belga Chadli, Kompany desviou a bola no primeiro pau; na sequência, a pelota bateu no braço do meia brasileiro Fernandinho e, por um baita golpe de azar, foi morrer no fundo das redes da nossa seleção. Gol contra.
Autor de Massa e poder (1960), o escritor judeu de origem búlgara Elias Canetti (1905-1994) bem poderia sentenciar que a psicologia de massas é tão implacável quanto tangível: o erro fatal do goleiro uruguaio se alastrou pelo desempenho pífio de seus companheiros de time como uma epidemia. Após o frango, o jogo acabou para o Uruguai.
O Brasil sentiu o gol precoce (e injusto) dos belgas (isto é, de Fernandinho), mas continuou atacando o adversário. Até então, nossa seleção jamais saíra perdendo no Mundial da Rússia – tal fato, a despeito da experiência dos jogadores, bem pode gerar ansiedade em uma partida das quartas. Ocorre que, na sanha de empatar o marcador, o Brasil comandado pelo conservador (isto é, retranqueiro) técnico Tite cedeu contra-ataques aos belgas. Num deles, aos 30 minutos do mesmo primeiro tempo, a Bélgica abriu 2 a 0 num belo chute cruzado de fora da área disparado por De Bruyne.
Como era de se esperar, o Brasil pressionou a Bélgica durante todo o segundo tempo. Aos 30 minutos, Philippe Coutinho cruzou uma bola açucarada para Renato Augusto, que, de cabeça e no cantinho, desviou dos mais de 2 metros do goleirão belga Courtois: 2 a 1.
5 minutos depois, o mesmo Renato Augusto, frente a frente com um Courtois já rendido, perdeu um gol feito da entrada da grande área – se não tivesse passado a 20 centímetros (se tanto) da trave adversária, a bola rasteira e caprichosa teria empatado o jogo.
Sem o frango do goleiro Muslera, o Uruguai poderia ter empatado a partida com a França; sem o frango do goleiro Muslera, o Uruguai poderia ter virado a partida em cima da França; sem o frango do goleiro Muslera, o Uruguai poderia ter eliminado a França e chegado à semifinal – a taça do tricampeonato mundial (1930; 1950; 2018) estaria a um triz das mãos de Muslera, as mesmas mãos de alface que propiciaram o frango.
Sem a fatalidade do gol contra do meia Fernandinho, o Brasil não teria saído atrás contra a Bélgica; sem a fatalidade do gol contra do meia Fernandinho, o Brasil não teria se exposto aos contra-ataques belgas e tomado a pá de cal do segundo gol; sem a fatalidade do gol contra do meia Fernandinho, o Brasil poderia ter eliminado a Bélgica e chegado à semifinal – a taça do hexacampeonato mundial (1958; 1962; 1970; 1994; 2002; 2018) estaria a um triz do braço direito de Fernandinho, o mesmo braço que propiciou o gol contra.
Os milhões de euros (e/ou de liras) que Muslera ganha anualmente defendendo a meta do Galatasaray, da Turquia, podem até dourar a pílula do frango. Mas o caráter culposo do frango vai rondar o goleiro uruguaio como um espectro doloso até o fim de sua carreira – a bem dizer, até o fim de seus dias. Muslera poderá ganhar todos os títulos imagináveis daqui para diante – a sucessão de taças tentará soterrar a latência da memória. Mas, ainda que o Uruguai venha a se tornar tricampeão mundial em 2022, no Catar, com Muslera à frente de sua meta, a Celeste já poderia ser tetracampeã. (Assim insinuarão os olhares dúbios que pairarão sobre Muslera a partir de agora; é isso que Muslera passará a escutar, à revelia de todas as suas vitórias, quando se envolver em discussões e brigas.)
Os milhões de libras esterlinas (e/ou de dólares) que Fernandinho ganha anualmente jogando no meio-campo do Manchester City, da Inglaterra, podem até dourar a pílula do gol contra. Mas o caráter culposo do gol contra vai rondar o meia brasileiro como um espectro doloso até o fim de sua carreira – a bem dizer, até o fim de seus dias. Fernandinho poderá ganhar todos os títulos imagináveis daqui para diante – a sucessão de taças tentará soterrar a latência da memória. Mas, ainda que o Brasil venha a se tornar hexacampeão mundial em 2022, no Catar, com Fernandinho em nosso meio-campo, a seleção Canarinho já poderia ser heptacampeã. (Assim insinuarão os olhares dúbios que pairarão sobre Fernandinho a partir de agora; é isso que Fernandinho passará a escutar, à revelia de todas as suas vitórias, quando se envolver em discussões e brigas.)
Muslera e Fernadinho terão o apoio e o consolo mais do que devidos de seus entes queridos, amigos verdadeiros e torcedores sinceros.
Muslera e Fernandinho jamais teriam cometido suas falhas se não tivessem sido convocados para a Copa do Mundo da Rússia e se não tivessem alcançado o auge de suas carreiras – conquistas que jamais despontarão para os ressentidos que, para aplacar a mais rematada inveja, só farão criticá-los a partir de agora.
Ninguém deixaria de agarrar a oportunidade de Muslera e Fernandinho com unhas e dentes.
Ainda assim, o sumo infortúnio do goleiro uruguaio e do meia brasileiro não nos pode mostrar o paradoxo do cume que prenuncia a vertigem da queda?
A sina de Muslera e Fernandinho, no campo de futebol, lembra a sina do generalíssimo Napoleão Bonaparte (1769-1821), no campo de batalha.
Consta que, após a derrota clamorosa para os russos – decorrente da invasão frustrada da Rússia pelas tropas napoleônicas entre 1812 e 1814 –, Napoleão Bonaparte não vê outra saída senão o suicídio.
O generalíssimo já galgara todos os postos e já pisara sobre todas as cabeças.
Ainda assim, não foram as vitórias incontestáveis que desvelaram a Napoleão a contingência e a fragilidade que aproximam o cume da queda. Foi a derrota irredimível que, ao fim e ao cabo, revelou ao imperador que a ascensão vertiginosa está umbilicalmente irmanada ao beco sem saída daquele que já não pode mais cair sem ter que se ajoelhar.
O senhor se vê aguilhoado a seus escravos.
A genealogia de Bonaparte remonta à pequena nobreza córsega, isto é, ao baixo clero do baixo clero da nobreza europeia. Assim, a ascensão vertiginosa do então jovem segundo tenente aos quadros máximos de la Patrie após a Revolução Francesa também pode se relacionar, sub-repticiamente, a feridas e ressentimentos de classe que, quando ardem em espíritos sedentos por poder e distinção, fustigam o dorso da vontade para que ela alce voos sempre mais altos.
Nesse sentido, a vitória e a desforra finais só se consumariam quando Napoleão tivesse varrido da Europa todo o alto clero da nobreza, em especial o nobilíssimo Alexandre I (1777-1825), Tsar de Todas as Rússias.
Nesse mesmo sentido, será que o cabo austríaco e conquistador da Europa Adolf Hitler (1889-1945) teria invadido a União Soviética se o segundo tenente imperial Napoleão Bonaparte tivesse desbancado o tsar Alexandre I?
Nesse mesmíssimo sentido, será que o filho de sapateiro georgiano e Tsar do Partido Comunista de Todas as Rússias Ióssif Stálin (1878-1953) teria expandido a Cortina de Ferro até Berlim se Alexandre I não tivesse levado suas tropas até Paris após desbancar Napoleão?
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.
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