Na mesma quinzena de março, o golpe militar fez sessenta anos e o fim de sua ditadura 39. Os que repudiam 1964 denunciam os golpistas, sem a autocrítica de onde os democratas erraram nos anos anteriores, e os que hoje celebram a redemocratização não percebem as dívidas que a democracia ainda tem com o Brasil. Apesar de o SUS e as Bolsas terem diminuído a penúria, o quadro de pobreza e miséria se mantém equivalente a 1985; ajudamos pobres, mas não implantamos estratégia para a abolição da pobreza. Nenhum passo estrutural foi dado para que o Brasil deixasse de ser campeão em desigualdade: na verdade, os benefícios aos ricos cresceram, aumentando a brecha na qualidade de vida entre o topo e a base da pirâmide social. A democracia explicitou a apartação brasileira e aumentou a violência nas cidades. A persistência da concentração de renda é uma dívida.
Depois de nove eleições presidenciais, de ampla liberdade, de instituições funcionando, a democracia ainda não fez as reformas de que a economia precisa. Foi incapaz de livrar o país da armadilha da baixa renda média, que não aumenta por falta de produtividade, de poupança, investimento, inventividade, empreendedorismo, competitividade, e por excesso de protecionismo, burocratismo, subsídios, instabilidades jurídica e política. A democracia mantém o Estado brasileiro perdulário, ineficiente, corrupto e descomprometido com os interesses do povo. Ao manter os problemas sociais, econômicos e políticos, a democracia se mantém frágil e em dívida com ela própria: não enfrentou a permanente ameaça de interferência dos militares na política; não fez as reformas políticas necessárias, ampliou mordomias e privilégios — além da corrupção, que tira a legitimidade e a confiança do eleitor nos agentes públicos. Ao tolerar e fortalecer o espírito corporativista, a democracia divide o país em múltiplas repúblicas com interesses particulares antagônicos. Prisioneira da armadilha do imediato, dedicada a administrar os conflitos de grupos no presente, a democracia é devedora.
“Depois de nove eleições presidenciais, as reformas de que a economia precisa não foram feitas”
A maior dívida é o descuido com a educação de base, porque depende dela superar o quadro de pobreza, distribuir renda, pacificar as cidades, aumentar a produtividade e construir o futuro. Apesar de programas pontuais e tímidos, nenhum presidente civil definiu metas ambiciosas para a qualidade e a equidade da escola oferecida aos brasileiros; nem iniciou a implantação do necessário sistema educacional nacional. Ao longo de quatro décadas de democracia, nasceram mais de 60 milhões de brasileiros, dos quais só 20 milhões receberam educação satisfatória para o mundo contemporâneo.
Para pagar essa dívida teria sido necessário que os sucessivos governos federais eleitos democraticamente cumprissem estratégia para implantar cidades com educação federal nos municípios que não têm condições de manter o seu sistema escolar com a máxima qualidade pelos padrões internacionais e com absoluta equidade, independente da renda e do endereço. Estratégia desse tipo foi executada para hidrelétricas, aeroportos, portos, até mesmo para o ensino superior, mas até hoje não foi considerada para a educação. Ao não fazer isso, a democracia fica emperrada, frágil, endividada com o Brasil, seu povo e o futuro de todos os cidadãos.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888