A internação de uma tia e os dramas, encobertos e escancarados, advindos desse e de outros episódios vivenciados por uma família negra no extremo sul do Brasil são a espinha dorsal do primeiro romance de Eliane Marques.
Em Louças de Família (Autêntica), a escritora e psicanalista eviscera os conflitos e obstáculos históricos que, reatualizados de tempos em tempos, alimentam a desigualdade e a discriminação racial no país. E os instrumentos para essa cirurgia psíquica e social estão dentro da linguagem, uma linguagem carregada de elementos e influências da cultura africana e afroamericana.
Dona de uma voz poeticamente crítica, Eliane Marques prefere falar em sentidos de um mundo em vez de “visão de mundo”, esta uma expressão um tanto ocidentocêntrica em sua avaliação. “Édipo já perdeu os olhos faz muito tempo”, diz. Sob essa perspectiva, ela conta que um livro que transformou seu olhar e sua vida foi Conjuro da Guiné, da porto-riquenha Mayra Santos-Febres.
Outra obra essencial para a escritora gaúcha é O Mundo Se Despedaça, do nigeriano Chinua Achebe. “Um livro que fala dos tempos nossos, idos e vindouros, para quem quiser ouvir”.
Louças de Família
Com a palavra, a autora.
Louças de Família sintetiza boa parte dos desafios encarados pela população negra brasileira nas últimas décadas. Acredita que, com a maior conscientização e algumas políticas públicas nesse contexto (apesar de retrocessos), estamos realmente em um novo patamar no enfrentamento da desigualdade e do contrato racial?
Deslocando-me da posição de escritora para a de leitora, entendo que Louças de Família insiste na metáfora e consiste na metonímia dos desafios da gente amefricana no Brasil, que envolve negres e não negres, numa relação de vida ou liberdade para uns e de vida e liberdade para outros. Essa disjuntiva é da ordem do discurso do Outro, ou seja, nasce dos sentidos nos quais desejamos permanecer colados, como um corpo submetido a uma pele, para manter algo que, na amefricanidade, há muito se perdeu – uma pretensa integridade do “eu-pele”.
Assim, são importantes as políticas públicas como tentativas de descosturar o que nunca foi costurado, como intervenção num discurso de semblante em que se afunda o pacto racial. Contudo, a passagem do contrato racial para o contrato social exige mais do que políticas públicas. E, como psicanalista, poderia conceber a conscientização apenas como a ação da consciência para além da narcotização que ela engendra. Desde que se sabe do inconsciente, a consciência está descentrada do seu lugar de poder, ainda que continue assim concebida.
Até que ponto as leituras e as experiências psicanalíticas influenciam sua chave de leitura da sociedade brasileira e sua escrita?
Eu me relaciono com certo discurso psicanalítico há mais de 20 anos. Primeiro, como analisanda; depois, como psicanalista e coordenadora de seminários de formação. De alguma maneira, a psicanálise, tal qual a amefricanidade, me constitui sujeita de linguagem, e isso contamina ou tempera tudo o que digo e escrevo. Contudo, não posso falar de chaves de leitura, porque ou a leitura dispensa suas famosas chaves ou se fecha num mundo em que apenas aqueles que têm as chaves entram.
+ LEIA TAMBÉM: O racismo que ainda mata e adoece no Brasil
Em seu romance é notável o trabalho com a linguagem em cima da matriz africana. O mundo está despertando finalmente para a produção de escritores africanos e afrodescendentes? Em que medida acredita que isso ajude inclusive a superar o racismo estrutural e cultural?
Eu não digo que o mundo se abre para a produção de escritoras e escritores estranhos ao supereuropeu. Posso dizer que algumas pessoas resolveram abrir seu mundo para linguagens menos fechadas em si mesmas. Posso dizer que algumas pessoas decidiram, mesmo sem chave, fazer um buraco em seu mundo e permitir a entrada de algo que manche a claridade das páginas em que se acomodavam. A escrita, a publicação, a circulação e a leitura de livros de escritores e escritoras amefricanas e africanas já são efeitos da luta pela vida e pela liberdade em contextos racistas.