Transtorno borderline: o sujeito (e a sociedade) na era dos extremos
Psiquiatra publica nova edição do livro que examina uma das condições mais complexas no universo dos distúrbios mentais, a personalidade borderline
Um mundo dividido entre heróis e vilões, em que as reações são sempre intensas e podem mudar de direção em um curto intervalo de tempo. Eis um retrato que até pode soar grosseiro, mas ajuda a dar uma ideia de como opera a cabeça de alguém com transtorno de personalidade borderline (TPB).
Uma condição que, como o nome sugere, foi descrita para ocupar um lugar na fronteira de outros distúrbios psiquiátricos – e, não à toa, compartilha com eles algumas características. O TPB é um diagnóstico que reflete uma instabilidade emocional crítica e constante, dificultando a convivência com os outros e causando intenso sofrimento.
Os critérios para classificar um indivíduo dentro da personalidade borderline se dividem em quatro esferas, também abordadas pelo tratamento: a instabilidade do humor, a impulsividade e propensão a comportamentos perigosos, a dificuldade nas relações interpessoais e as distorções de percepção e pensamento.
Contudo, não é fácil cravar tal diagnóstico, ainda mais numa sociedade marcada por comportamentos cada vez mais extremos. Mas um olhar sensível e treinado para os conflitos internos e externos dos pacientes permite não só entender o que se passa naquela mente como propor caminhos terapêuticos capazes de levar a uma remissão do quadro.
E é nessa direção que somos conduzidos pelo livro Eu Te Odeio – Não Me Deixe, do psiquiatra Jerold Kreisman e do escritor Hal Straus, cuja edição revista, atualizada e ampliada a Editora Sextante acaba de publicar.
Entre histórias de pacientes, citações a clássicos literários e explicações científicas em linguagem palatável, a dupla entrega um perfil das principais características do TPB, suas diferenças para outros transtornos (o que distingue um borderline de um bipolar, por exemplo?) e linhas de tratamento.
Uma obra que fala de progressos e desafios em saúde mental e evoca a fronteira entre o que é normal e patológico sob a chave do impacto de uma condição ou personalidade na vida de uma pessoa e seu entorno.
Eu Te Odeio - Não Me Deixe
Com a palavra, Jerold Kreisman.
Desde a primeira publicação do livro, o que o senhor considera como o principal avanço diante do transtorno de personalidade borderline?
Nos últimos 35 anos, desde a primeira edição de Eu Te Odeio – Não Me Deixe, houve avanços significativos, agora contemplados na nossa última edição. A mudança mais marcante para mim é a melhora no prognóstico dos pacientes no longo prazo. Anos atrás, o TPB era visto como algo basicamente incurável. Agora sabemos que a maioria dos pacientes é capaz de melhorar. Boa parte deles melhora a tal ponto que não preenche mais os critérios de sintomas para o diagnóstico.
Além disso, foram desenvolvidas abordagens de psicoterapia específicas – como a terapia comportamental dialética, terapia baseada em mentalização e terapia focada na transferência, entre outras. O uso de medicamentos também é mais bem compreendido. Na primeira edição do livro, os remédios eram mencionados em um apêndice. A partir da segunda edição, considerações sobre a terapia medicamentosa passaram a exigir um capítulo completo à parte.
O reconhecimento de que um “tamanho único” não serve para todo mundo, ou seja, que uma única abordagem terapêutica não funciona para todos os pacientes, continuará dirigindo a pesquisa em busca de ajustes nos programas de psicoterapia atuais e na criação de novos tratamentos. Outros medicamentos que podem tratar os sintomas do transtorno borderline também estão sendo desenvolvidos por farmacêuticas. E estudos com o uso de psicodélicos para depressão, ansiedade e estresse pós-traumático sugerem que um dia poderão ser úteis no tratamento do TPB.
Sintomas de transtorno borderline são frequentemente confundidos com os de outras doenças psiquiátricas. Qual o grande desafio no diagnóstico da condição?
O diagnóstico atual é determinado por termos categóricos. O indivíduo que expressa ao menos cinco de nove sintomas definidores qualifica-se para o diagnóstico de transtorno de personalidade borderline. Mas são inúmeras as complicações desse método. Transtornos de personalidade são tidos como condições relativamente estáveis. No modelo existente, se uma pessoa com cinco dos nove sintomas deixar de ter um deles pode passar a ser considerada “curada”.
A metodologia atual não leva em conta os graus de adoecimento, ou seja, os níveis limítrofes. Por isso existem movimentos para estabelecer um modelo dimensional de definição do transtorno capaz de retratar a condição de maneiras mais específicas e dentro de um espectro. Eu acredito que o futuro do diagnóstico irá considerar essas variáveis.
No livro, o senhor fala de uma “sociedade borderline”. Como estes tempos de pandemia e guerras podem repercutir na manifestação e no diagnóstico do transtorno?
O principal elemento que considero característico do desenvolvimento de uma sociedade borderline é a crescente polarização nas populações. As posições brancas ou pretas, boas ou más e certas ou erradas a que as pessoas se apegam refletem a mentalidade do transtorno borderline. O isolamento provocado pela recente pandemia e as invectivas furiosas nas redes sociais, dentro das quais é cada vez mais difícil discernir o que é uma informação verdadeira, alimentam extremismos.
E o pior de tudo, a guerra, pela sua própria natureza, exacerba essas posturas extremas. Acessos de raiva, reações impulsivas, mudanças de humor – todos característicos do TPB – são intensificados em momentos assim.