As criaturas do além que penetram ruas, casas e escritórios no Japão de Aoko Matsuda podem ir ao salão de beleza, manter encontros amorosos ou espantar um tarado na esquina – também denunciam os ditames e comportamentos de uma sociedade machista que ainda atormenta as mulheres.
A elas somos apresentados em Onde Vivem as Monstras, coletânea de contos da escritora japonesa publicado pela editora Gutenberg. O título traduzido para o português evoca o clássico infantil do americano Maurice Sendak. Se nele acompanhamos as descobertas fantásticas de um garoto colocado de castigo, nas histórias de Aoko fantasmas compartilham com gente de carne e osso as alegrias, angústias e cobranças da vida – vida que aparentemente não tem ponto final, se encerra nas reticências…
Onde vivem as monstras
Ao atualizar causos tirados do folclore japonês, a típica aura de terror sai de cena para dar lugar a uma narrativa que seria absurdamente realista não fossem as visitas do outro mundo. E essas visitas, transformadas na passagem pela morte, têm muito a dizer, fazer e acusar. Seu alvo favorito é o patriarcado nipônico, com séculos de opressão sobre as mulheres em suas costas.
Um olhar sarcástico e crítico às tradições que se vale de mitos e inspirações oriundos do tradicional imaginário japonês. Uma (re)apropriação literária que tornou Aoko Matsuda um fenômeno editorial dentro e fora do país que encantou o Ocidente pelos seus ares de modernidade.
Com a palavra, a autora.
Autores como a filósofa americana Donna Haraway dizem que os monstros – em muitos sentidos – nos mostram outras formas de ver e entender o mundo. Você acha que essa ideia se aplica ao seu livro?
Certamente! Eu acredito que se aplica ao meu livro também. Nas histórias de fantasmas, mulheres são mortas ou oprimidas antes de se tornarem fantasmas ou monstros. Essas histórias foram escritas há muito tempo, mas, ainda assim, eu, que estou na casa dos 40 anos, me identifico com elas, a ponto de perceber que as mesmas estruturas de discriminação e desigualdade ainda sobrevivem no século XXI.
Portanto, decidi escrever histórias em que mulheres – fantasmas ou reais, que estão enfrentando dificuldades na sociedade contemporânea – possam se unir e formar uma solidariedade que transcende o tempo. Ou seja, a aparição de fantasmas e monstros torna visíveis as mulheres ignoradas ou não apoiadas pela sociedade, bem como os problemas inerentes a ela.
Suas histórias foram inspiradas em contos folclóricos japoneses. Como eles influenciam sua produção escrita?
Desde a infância, eu gostava de histórias de fantasmas japoneses, contos folclóricos e mitologia grega. O que particularmente me atraía eram as mulheres fantasmas e monstros dessas histórias. Embora não possuíssem poder enquanto vivas, ao se tornarem fantasmas ou monstros, elas adquiriam poder e buscavam vingança contra aqueles que as levaram à morte. Eu amava essas figuras “diferentes” e aterrorizantes.
Cresci em Himeji, na província de Hyogo, uma cidade conhecida pelo Castelo de Himeji, onde fica o poço de Okiku, que aparece neste livro. Viver em uma cidade onde um elemento de uma história realmente existe apagou a linha entre o cotidiano e o extraordinário, uma sensação que tem sido muito útil na escrita de romances.
Mesmo adulta, continuei a gostar de histórias de fantasmas, mas comecei a sentir mais profundamente a dor e o sofrimento das mulheres nessas histórias do que quando era criança. Isso porque não eram apenas histórias; refletiam as realidades enfrentadas pelas mulheres no mundo real, provando como as sociedades tratavam as mulheres através dos tempos. Então, enquanto me perguntava que tipo de história não me faria sentir triste, tentei criar um lugar onde as mulheres fantasmas e monstros dos contos folclóricos pudessem viver segura e felizes.
Além disso, uma razão pela qual gosto de contos e histórias de fantasmas é a sua representação da “transformação”. Acredito que a “transformação” expande as possibilidades do mundo, da sociedade e dos seres vivos, incluindo os humanos, e tento retratá-la de todas as formas em minha literatura.
Nas histórias do livro, podemos notar como as mulheres são social e sexualmente vulneráveis na sociedade japonesa. Qual é o principal desafio que visualiza nesse sentido?
O Japão ainda é fortemente dominado pelo patriarcado e controlado por partidos conservadores, tornando difícil a vida em sociedade, independentemente de quanto a consciência cidadã seja atualizada. Há um slogan feminista que diz “O pessoal é político”, e acredito que é necessário estar constantemente ciente dos problemas incorporados ao nosso cotidiano e engajar-se persistentemente em ações, mesmo que pequenas, pois elas são capazes de levar a mudanças.