‘O Brasil tem riqueza suficiente para acabar com a pobreza’
Em 'Uma ecologia decolonial', o caribenho Malcom Ferdinand defende uma luta pelo meio ambiente que também priorize a dignidade humana

A defesa do meio ambiente e a luta por justiça social são dois desafios urgentes da vida contemporânea, mas que raramente são encaradas como parte de um mesmo esforço. O martinicano Malcom Ferdinand subverte essa lógica e defende um novo conceito, que amalgama preservação ecológica e dignidade de povos oprimidos.
Essa nova maneira de pensar o mundo, inspirada pelo modo de vida de povos indígenas e originários, é exposta em Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho, lançado no Brasil pela editora Ubu.
Doutor em ciência política pela Universidade Paris VII e formado em engenharia ambiental pela University College London, o pensador rebate a ideia de que é possível salvar o meio ambiente sem pensar na injustiça contra povos oprimidos. Ao mesmo tempo, tira os humanos do centro quando pensa em preservação dos ecossistemas — entre espécies e ideologias diferentes, deveria haver espaço para todos.
Com a palavra, Malcom Ferdinand.
O que é ecologia colonial?
Uma forma rápida de explicar seria associá-la ao ambientalismo que cuida do meio ambiente mas ignora as pessoas, especialmente as racializadas, escravizadas, colonizadas e marginalizadas. É uma visão despolitizada, que tenta resolver a crise climática sem justiça climática. Isso é o que chamo de ecologia colonial.
Por que chamar de colonial?
A colonização não foi só sobre controlar terras e pessoas, foi uma imposição violenta e misógina de um modo de vida. É explorar a terra para lucro máximo, escravizar pessoas, principalmente negras, mas não somente elas, para cultivar e ignorar tanto a destruição ambiental quanto o sofrimento humano. Se você pensa “devo preservar esta montanha, mas não ligo para quem vive lá”, está reproduzindo a ecologia colonial. Por outro lado, a ecologia decolonial une a luta por emancipação, dignidade e igualdade para os oprimidos com a necessidade de preservar o equilíbrio ecológico do planeta.
A ecologia é um movimento fortemente adotado pela esquerda. Por que muitos mantêm uma mentalidade colonial, apesar das raízes marxistas e anticapitalistas?
Isso vem da ideia de que a luta de classes explica todas as dominações, como se o proletariado fosse um sujeito universal. Meus estudos e diversas outras experiências de pesquisa mostram que nem toda opressão se reduz à classe. A desumanização dos povos indígenas, por exemplo, não pode ser explicada só pela luta de classes. Os marxistas precisam de humildade para aprender com pensadores indígenas, como Nêgo Bispo, Ailton Krenak, Davi Kopenawa e outros. Os escritos de um pensador branco europeu do século XIX, por mais brilhantes que sejam, não dão conta de todas as forças sociais, nem no passado, nem hoje.
Você defende que a preocupação com o ambiente não deve focar só nos humanos, mas também em outras formas de vida, uma ideia que também é destacada por pensadores como Achille Mbembe. Essa é uma inspiração que você herda das tradições africanas?
É difícil atribuir a uma única cosmogonia. Certamente me inspiro em tradições africanas, mas também em tradições americanas e indígenas. Na verdade, herdo isso de todas as cosmogonias não modernas. A modernidade criou essa divisão entre a cultura e a natureza. A modernidade trata os não humanos como máquinas, mas a teia da vida não para na pele humana. A Covid nos mostrou isso. O que acontece com os animais pode acontecer com a gente e vice e versa. A justiça e a política precisam considerar os não-humanos.
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Como você rebate às críticas de que essa é uma política identitária?
Muitas vezes, chamar algo de “identitarismo” é uma forma de deslegitimar movimentos, principalmente pela extrema-direita e outros extremistas. A ocupação colonial impôs um único modo de ser. A modernidade estabeleceu que você precisa ser cristão, eurocêntrico, branco. A diferença era (e ainda é) vista como ameaça. Minha resposta? Não tema o outro. Quando você começa a compor com pessoas diferentes de você, percebe que o mundo não precisa ser habitado por um único tipo de pessoa.
Muitos países usam a soberania nacional como uma maneira defender a exploração ambiental. O que você acha dessa ideia de que é preciso destruir o ambiente em nome de um esforço para melhorar a vida dos mais pobres?
Eu não acho que o crescimento econômico seja uma maneira de melhorar a vida dos mais pobres. O problema não é crescimento, mas distribuição. O Brasil, por exemplo, tem riqueza suficiente para acabar com a pobreza, mas sofre com desigualdade extrema. Dizer que precisamos destruir o meio ambiente para ajudar os pobres é um mito capitalista. Os pobres, aliás, são sempre os mais afetados pela destruição ambiental.
Qual o papel do Brasil nessa luta?
O Brasil é crucial pelo seu tamanho, importância ecológica e história. A luta é interna e global. As respostas de Lula a Trump, por exemplo, assim como a posição da África do Sul sobre a Palestina, são importantes. A voz do Brasil ficará mais forte à medida que políticas sociais avançarem.
Os jovens costumam ser vistos como nossa maior esperança contra o pensamento anticolonial e anti-ecológico. O que você pensa sobre isso?
É preguiçoso depositar toda a esperança neles. Adultos no poder—políticos, jornalistas, CEOs, acadêmicos—têm condições de agir agora. Se não agirmos, que exemplo estamos dando para os jovens? Nós é quem precisamos agir.