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‘Justiça para os animais’: teoria e prática para respeitar outras espécies

Em novo livro, a filósofa Martha Nussbaun demonstra os princípios éticos e legais que deveriam resguardar animais domésticos e selvagens. Leia trecho

Por Martha Nussbaun (tradução: Ricardo Doninelli Mendes)*
Atualizado em 9 Maio 2024, 11h15 - Publicado em 19 mar 2024, 08h22
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  • Os animais estão em apuros no mundo todo. Nosso mundo é dominado por humanos em toda parte: na terra, nos mares e no ar. Nenhum animal não humano escapa da dominação humana. Na maioria das vezes, essa dominação inflige danos injustos aos animais, resultantes das crueldades bárbaras da indústria da carne, das caças clandestina e esportiva, da destruição dos habitats, da poluição do ar e dos mares ou da negligência com os animais de companhia por pessoas que dizem amá-los.

    De certa forma, esse problema é antigo. Tanto as tradições filosóficas ocidentais como as não ocidentais deploram a crueldade humana com os animais há cerca de dois milênios. O imperador hindu Ashoka (circa 304-232 a.C.), um convertido ao budismo, escreveu sobre seus esforços para abandonar a carne e renunciar a todas as práticas que prejudicassem os animais.

    Na Grécia, os filósofos platônicos Plutarco (circa 46-119 d.C.) e Porfírio (circa 234-305 d.C.) escreveram tratados detalhados reprovando a crueldade humana com os animais, descrevendo sua inteligência aguçada e sua capacidade para a vida social e fazendo um apelo aos humanos para mudarem sua alimentação e seu modo de vida.

    Mas, em geral, essas vozes caíram em ouvidos surdos, mesmo no reino supostamente moral dos filósofos, e a maioria dos humanos continuou a tratar grande parte dos animais como objetos, cujo sofrimento não importa – embora eles às vezes abram uma exceção para os animais de companhia. Enquanto isso, inúmeros animais sofrem com a crueldade, a privação e a negligência.

    Atualmente temos, então, uma dívida ética há muito vencida: ouvir argumentos que nos recusamos a escutar, cuidar do que obtusamente ignoramos e agir com base no conhecimento que podemos alcançar tão facilmente sobre nossas más práticas. Hoje, porém, temos razões que os humanos nunca tiveram antes para fazer algo com relação ao tratamento injusto dispensado aos animais.

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    Primeiro, a dominação humana aumentou exponencialmente nos últimos dois séculos. No mundo de Porfírio, os animais sofriam quando eram mortos por causa da sua carne, mas até aquele ponto, eles tinham vidas bastante decentes. Não havia uma indústria frigorífica como a que atualmente cria esses animais como se já fossem apenas carne, confinando-os em condições horríveis, apertados e isolados, até morrerem antes de terem vivido.

    Justiça para os animais

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    Os animais foram caçados por muito tempo na natureza, mas a maior parte de seus hábitats não foi tomada por habitações humanas ou invadida por caçadores buscando ganhar dinheiro com o assassinato de um ser inteligente como um elefante ou rinoceronte.

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    Nos mares, os humanos sempre pescaram para se alimentar, e as baleias há muito são caçadas devido ao seu valor comercial. Mas o mar não estava cheio de lixo plástico que atrai animais para comer, e então os sufoca até a morte. Nem as empresas de perfuração de petróleo submarino criavam poluição sonora em todos os lugares (perfurações, bombas de ar usadas para mapear o chão do oceano), tornando a vida cada vez mais difícil para criaturas sociais cujo sentido da audição é o principal modo de comunicação.

    Aves eram baleadas para servirem de comida, mas aquelas que escapavam não se engasgavam com a poluição do ar ou batiam fatalmente em arranha-céus urbanos cujas luzes as seduzem. Resumindo: a abrangência da crueldade e negligência humanas era relativamente estreita. Nos dias de hoje, novas formas de crueldade contra animais aparecem o tempo todo – mesmo sem serem reconhecidas como crueldade, já que seu impacto na vida de seres inteligentes é pouco considerado.

    Portanto, não temos apenas a dívida vencida do passado, mas uma nova dívida moral, que aumentou mil vezes e está aumentando continuamente. Como o alcance da crueldade humana se expandiu, também cresceu o envolvimento de praticamente todas as pessoas.

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    Mesmo aquelas que não consomem carne produzida pelo setor da pecuária industrial provavelmente terão usado itens de plástico descartáveis, usado combustíveis fósseis extraídos do fundo do oceano e poluentes do ar, morado em áreas por onde elefantes e ursos uma vez vagaram, ou vivido em edifícios que significam a morte para aves migratórias.

    A extensão de nosso próprio envolvimento em práticas que prejudicam os animais deve fazer com que cada pessoa com consciência considere o que todos nós podemos fazer para mudar essa situação. Imputar culpas é menos importante do que aceitar o fato de que a humanidade como um todo tem o dever coletivo de enfrentar e solucionar esses problemas.

    (…)

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    A história deste livro não é a história da extinção em massa, mas a dos sofrimentos de criaturas individuais que ocorrem dentro do contexto de indiferença humana com a biodiversidade. Existe uma outra razão pela qual a evasão ética do passado precisa terminar agora. Atualmente sabemos muito mais sobre a vida dos animais do que há cinquenta anos. Sabemos demais para que as desculpas simplórias do passado sejam oferecidas sem vergonha.

    * Martha Nussbaun é filósofa e autora de Justiça para os Animais, recém-publicado pela Editora WMF Martins Fontes

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