Será que o que convencionamos chamar de deficiência mental não seria apenas outra forma de enxergar e entender o mundo? Até que ponto a sociedade inclusiva que queremos criar realmente respeita as vontades e necessidades dos excluídos? Faz sentido o Estado tutelar os “diferentes”?
São questões como essas, que cutucam a consciência, que vêm à baila quando submergimos no premiado romance Leitura Fácil, da espanhola Cristina Morales, recém-publicado no Brasil pela editora Mundaréu com a tradução de Elisa Menezes.
As narradoras e protagonistas do livro são quatro mulheres que, em comum, têm a mesma família, são diagnosticadas com algum grau de deficiência intelectual e dividem um teto – no caso, um apartamento sob a custódia do departamento de saúde mental do governo de Barcelona.
O romance acompanha, na mistura de pontos de vista e formas literárias, suas aventuras e desventuras numa sociedade concebida por e para um seleto grupo – o dos homens, brancos, normais, heterossexuais, com poder de compra, obviamente.
Dando voz a essas personagens, Morales joga as cacas, os problemas e suas supostas soluções no ventilador, num texto ácido e por vezes hilário que dessacraliza o corpo, a mente, o sexo, os valores e o senso de comunidade. E o faz numa prosa prenhe de criatividade e diversidade.
Os capítulos se alternam entre memórias de uma praticante de “dança inclusiva”, depoimentos perante um juiz (o Estado pode decidir pela esterilização forçada de alguém “anormal”?), atas dos encontros de uma rede libertária que articula ocupações, um fanzine anarquista e um romance escrito no gênero pedagógico “leitura fácil”, aquele instruído pelo serviço espanhol de amparo aos deficientes.
Àngels, Marga, Patri e Nati… Difícil sair das vivências, obsessões, fabulações e transgressões (?) dessas quatro mulheres indiferente. Eis um livro que desestabiliza a noção atual de inclusão e, por mais utópicos que sejam os ideais de transformação social mobilizados ali, no mínimo nos convida a olhar o mundo e as pessoas com outra lente.
Leitura fácil
Com a palavra, Cristina Morales.
Como foi mergulhar no universo das deficiências intelectuais para dar voz a suas protagonistas?
Eu já fazia parte desse universo porque praticava o que se conhece como dança integrada ou dança inclusiva, que é um dos temas centrais do romance. Foi minha experiência como bailarina dessa corrente de dança que me lançou a escrever Leitura Fácil.
Terminei o livro com a sensação de que, muitas vezes, o que chamamos de deficiência mental seria, na realidade, uma diversidade na forma de ver e entender o mundo. Qual seu maior aprendizado após o percurso de escrita de Leitura Fácil?
A deficiência mental ou intelectual é um conceito criado muito recentemente, no fim do século XX, mas está tão presente na sociedade neoliberal que nós o naturalizamos. Essa sociedade, herdeira direta da sociedade burguesa do final do século XIX, patologiza e criminaliza todo aquele que não se encaixa em seu ideal burguês. Nela, o macho branco, heterossexual e de alto poder aquisitivo é a medida de todas as coisas.
Seu livro está cheio de críticas ao status quo, mas rompe com a vitimização dos “diferentes”. Essa é uma armadilha na busca por uma sociedade mais inclusiva?
A noção de “inclusão” é uma revisitação da vitimização. Dizer “Eu te incluo” significa que alguém, no centro do poder simbólico e material, atrai magnanimamente a um outro, que está fora desse centro, a seu sistema de valores. Isso é o que significa “incluir” em nossas sociedade. Não é uma ferramenta útil para a emancipação. É mais uma ferramenta de submissão ao sistema.
Entre a anarquia e o Estado democrático de direito – afinal, a política também faz parte da discussão no romance -, acredita que podemos alcançar uma forma de governo que verdadeiramente respeite as diferenças biológicas, psíquicas e sociais?
A autoridade é a base de toda a opressão, e a autoridade é a base do Estado, de qualquer modelo de Estado. Nunca existiu, não existe nem existirá respeito à vida e à liberdade em nenhum tipo de Estado. Eles são máquinas de morte.