‘Escrever é gritar o que o genocídio engoliu’, diz autor franco-ruandês
Um dos destaques da última Flip, o escritor Gaël Faye publica novo livro no país e reflete sobre a reconstrução de Ruanda, inclusive pela literatura

É impossível falar de Ruanda sem falar no genocídio que devastou o país africano em 1994. Suas cicatrizes estão cravadas na carne, na memória e no solo de uma nação que buscou se reerguer “apesar do luto e das feridas abertas”, conforme as palavras de um dos filhos da geração que mais sofreu com os ataques de motivação étnica e o processo de reconciliação e renascimento local.
Filho de mãe ruandesa e pai francês, Gaël Faye deixou Ruanda ainda em 1994, refugiando-se e vivendo na França com a irmã. De volta à capital do país, onde mora desde 2015, o autor, que participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), acaba de publicar no Brasil o premiado romance Jacarandá pela Editora 34.
Na obra, acompanhamos o arvorecer de um jovem também franco-ruandês – com as descobertas e as angústias típicas dessa fase da vida – que sentirá uma espécie de chamado para conhecer suas raízes numa viagem à Ruanda de sua mãe e de seus ancestrais.
É nessa imersão pela nação africana, que ainda vivencia o rescaldo dos tribunais populares que reuniam vítimas e agressores, que Milan, o protagonista de berço europeu considerado “branco”, irá percorrer uma terra em reconstrução, com uma sociedade que precisa seguir em frente, sem se esquecer dos crimes do passado.
“Escrever é fazer o terrível balanço de tudo o que perdemos intimamente, individual e coletivamente”, diz o autor à coluna, numa entrevista gentilmente vertida do francês para o português pela editora da 34 Raquel Camargo, que traduziu o livro junto a Mirella Botaro. Com efeito, Jacarandá semeia um romance de formação e colhe um romance de múltipla (e nem sempre plácida) reconciliação – pessoal, familiar, social…
Com a palavra, Gaël Faye.
Sobreviver para testemunhar; testemunhar para sobreviver. É assim que a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, que perdeu muitos familiares no genocídio de 1994, descreveu sua missão como escritora. Como a sua geração encara esse trabalho literário diante das memórias de um povo e de um país?
Minha geração costura o passado e o presente. Temos a memória da vida de antes do genocídio, temos a memória dos 100 dias de genocídio e a memória da reconstrução do país. Mas. como éramos muito jovens para protagonizar de fato essa construção, fomos testemunhas do esforço da geração precedente, a geração dos nossos pais, que reergueu o país apesar do luto e das feridas abertas. Parece-me que a minha geração não testemunha para fazer com que o mundo reconheça que o genocídio existiu. Não temos mais tempo para isso. Trata-se de um fato histórico incontestável: de abril a julho de 1994, aconteceu um genocídio em Ruanda, um genocídio contra os tútsis.
Minha geração escreve para tentar reaver os contornos do que ainda nos escapa, do que resiste a ser formalizado. Levamos tempo para encontrar as palavras certas, a forma adequada. Alguns começaram a escrever quando se tornaram pais. Tivemos de sair do estado de choque em que o genocídio e suas consequências nos deixaram. Por um lado, escrever é fazer o terrível balanço de tudo o que perdemos intimamente, individual e coletivamente. Há, portanto, uma tentação de ficar em silêncio. Mas escrever também é se fazer ouvir, é gritar o que o genocídio engoliu: um universo inteiro.
Acredita que o processo de reconciliação em Ruanda, tão presente em seu último livro, foi concluído com sucesso?
Devemos lembrar que o que aconteceu em Ruanda é um caso muito particular. Alguns historiadores falam de um genocídio de proximidade. Não foi um exército estrangeiro que matou a população. Foram os vizinhos que mataram seus vizinhos, os amigos que mataram seus amigos, os padres que mataram os fiéis, os pais que mataram os filhos… Os algozes conhecem as vítimas, as vítimas conhecem seus algozes. O genocídio estilhaçou tudo, até as raízes mais profundas da cultura ruandesa. Recriar uma sociedade depois de um acontecimento assim é uma tarefa infinita e complexa, e precisamos encontrar conceitos como o de reconciliação para recriar o coletivo, para fabricar uma narrativa de país.
Muitas sociedades utilizam noções carregadas de valores suficientemente amplos e universais para darem a si mesmas um horizonte, uma direção. Como as noções de liberdade, de igualdade e de fraternidade na França, por exemplo. Mas isso nunca é garantia de que chegamos lá. A reconciliação é uma palavra que pertence ao campo político. Nós precisamos desse tipo de palavra, mas ela não diz nada sobre o que move o coração e a mente de cada cidadão em Ruanda. Somente a literatura pode ter acesso a esse tipo de segredo. A única realidade tangível, observável e indiscutível é que Ruanda é novamente um país, uma sociedade, e que os ruandeses convivem uns com os outros pacificamente há três décadas.
Mas o mundo assimilou as lições catastróficas do genocídio ruandês?
É uma pergunta retórica. Embora não se possa comparar um evento histórico a outro, a situação em Gaza há quase dois anos nos mostra a que ponto o mundo pode permanecer em silêncio, se mostrar covarde, cúmplice ou impotente diante de um genocídio que se desenrola ao vivo diante dos nossos olhos. A famosa frase “Nunca mais”, que surgiu após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, continua sendo uma realidade distante…
Considerando seus projetos com música e outras expressões artísticas, avalia que existem coisas que apenas a literatura pode capturar e transmitir
Tento não compartimentar, pois tenho a impressão de que todas as formas de arte que pratico estão interligadas, participam do mesmo movimento, do mesmo gesto, da mesma respiração… O que mais me fascina na literatura é a experiência solitária que ela representa. O escritor está sozinho, o leitor está sozinho. E, se o escritor é um maestro, o leitor é o músico que lê a partitura. Ele tem uma postura ativa diante da obra. Compreende-se então que ele possa tirar som do instrumento de que dispõe, isto é, sua própria sensibilidade, como bem entender, recompondo suas próprias imagens e representações. A literatura permite, acima de tudo, tornar-se outro, vestir outras vidas que não a sua. Ela é o encontro imediato com a alteridade, é o infinito do mundo na bolha do nosso próprio imaginário.