Darwin também tinha minhocas na cabeça
Sim, minhocas! Elas protagonizam livro do naturalista até então inédito no Brasil. Sua tradutora conta os bastidores desse 'trabalho de detetive'

O pequeno, numa escala de milhões e milhões de indivíduos e anos, pode se tornar imenso. Eis a poderosa sacada de Charles Darwin (1809-1882) desenvolvida em sua influente obra que culmina em um livro dedicado a ninguém mais, ninguém menos que as minhocas. Eis o grande insight do pai da teoria da evolução, na visão da escritora Sofia Nestrovski, que acaba de traduzir seu último manuscrito publicado – uma investigação sobre essas criaturas que tornam a terra (e a Terra) o que ela é.
A Formação da Terra Vegetal pela Ação das Minhocas, com Observações sobre Seus Hábitos – um título tipicamente oitocentista – vem à lume pelas mãos da Editora Fósforo e traz décadas de experimentos e observações de Darwin, algumas delas ao lado dos filhos, sobre esses anelídeos que, ao comer e digerir partículas do solo, transformam o chão onde pisamos, viabilizando plantações, construções e, acima de tudo, um profundo e complexo ecossistema.
“Ele nos diz que, se não fosse o trabalho das minhocas, o mundo não seria o que ele é”, destaca Nestrovski. Pois é: elas adubam e compactam o solo, armando uma rede de interações geológicas e biológicas que, em última instância, se provou crucial para a sobrevivência de um monte de outros animais, inclusive a gente.
Darwin chegou a essas conclusões se debruçando sobre vasos de minhocas mantidos em sua propriedade, realizando expedições pela Inglaterra e revisando estudos de outros pesquisadores. Reuniu suas descobertas e hipóteses em um livro que vasculha as peculiaridades fisiológicas dessas criaturas e as consequências do seu labor ininterrupto para o equilíbrio da terra – é o naturalista vestindo a camisa do ecologista, como aponta o esclarecedor posfácio do jornalista científico Reinaldo José Lopes.
No fundo, e bem no fundo, Darwin nos faz enxergar o que ele mesmo chama de a “inteligência” dos outros animais e questionar completamente aquela concepção hierárquica da vida na Terra – com os seres humanos no topo. As minhocas, quem diria, estão aí para provar.
Com a palavra, Sofia Nestrovski.

Sobre a sua relação com Darwin: foi paixão à primeira leitura?
Sim, eu comecei a ler Darwin em 2019 por indicação da Fernanda Diamant [editora], que na época foi quem veio com o convite para que eu criasse o podcast Vinte Mil Léguas. Ela sugeriu que a primeira temporada falasse de Darwin. Eu nunca tinha lido, só conhecia aquilo que a gente aprende no ensino médio. Mas, quando peguei para ler, percebi que A Origem das Espécies se parecia muito com os livros dos quais eu mais gostava. Lembrava muito romances do século XIX, do tipo Charles Dickens ou mesmo Sherlock Holmes. Darwin tinha aquele estilo de pensar e escrever.
Então eu comecei a ler junto com a Leda Cartum [roteirista], que fez o Vinte Mil Léguas comigo, e a gente se deu conta de que era como ler literatura mesmo. Como ler um grande romance de suspense que você quer seguir para saber o que vai acontecer na próxima página. Esse primeiro contato não ocorreu porque a gente queria entender os conceitos, e claro que eles importam, mas, como na literatura, o que vem em primeiro plano é como a coisa é contada. E o jeito como Darwin conta a história nos capturou.
Pois é, embora seja um cientista, Darwin tem um estilo de prosa que não peca pelo excesso de termos técnicos, por vezes recorrendo a descrições e arroubos realmente literários. É um estilo bem diferente dos acadêmicos atuais, não?
Darwin escrevia para ser lido por todo tipo de gente. Ele não escrevia só para especialistas. Então, os livros dele sempre têm um apelo descritivo, como se a gente pudesse ver o que ele estava observando. No caso do livro das Minhocas, sabemos que a obra vendeu muito, foi um sucesso quando foi publicada. Todo mundo já viu minhocas, tinha uma noção do que ele estava falando. Ainda mais no século XIX, quando as pessoas tinham uma relação mais próxima com a natureza. Darwin sabia jogar com essa curiosidade do público.
A primeira metade do livro, inclusive, é muito divertida. Darwin descreve o tanto de experimento que fez – foram 40 anos coletando material sobre as minhocas. E a gente percebe nessas passagens que ele era uma pessoa extremamente criativa. Olhando para ele, não vemos diferença no modo de um cientista e de um artista pensar a natureza. Darwin é tão imaginativo quanto um poeta.
E é assim que ele faz essa imersão em meio às minhocas?
Para ele entender como as minhocas vivem, vai fazendo todo tipo de pergunta. Será que elas são cegas ou não, ouvem ou não, têm alguma preferência de gosto, preferem um tipo de alimento ou outro, como se relacionam entre si, gostam mais da luz do dia ou de um certo grau de temperatura, como fogem dos predadores… No fim, o que ele se pergunta é: como é que é a mente das minhocas? E como é possível deduzir uma coisa dessas. Ainda mais naquela época, sem um laboratório sofisticado. No livro, a gente acompanha Darwin pergunta atrás de pergunta até que ele chega a algumas respostas.
E ele já estava no fim da carreira, digamos assim…
É muito bonito ver um cientista, já no fim da vida e tendo conquistado toda a fama e o conforto que conquistou, ainda assim se fazendo as perguntas mais básicas, sem nenhum comodismo. Isso era muito admirável em Darwin: ele nunca fica acomodado.
Para você, qual o aspecto mais fascinante das minhocas veio à tona depois de ler a obra?
Darwin faz uma uma afirmação impressionante. Ele diz que, se não fosse pelo trabalho das minhocas, o mundo não seria o que ele é. Chega a dizer que talvez elas tenham um papel mais importante para a terra do que qualquer outro animal. O que ele observa é que, no plano individual, uma minhoca sozinha até faz pouco, mas, se a gente considerar que existem minhocas no mundo todo e elas estão trabalhando há milênios, digerindo e processando a terra… É esse trabalho cumulativo que faz a terra ser o que ela é. É graças às minhocas que a gente tem vegetação e, se a gente extrapolar e lembrar que os animais também vivem em função dessa vegetação, vai perceber que, no limite, a gente também depende das minhocas.
Darwin faz, portanto, uma inversão maravilhosa da hierarquia animal. Ele chega à conclusão de que, se o ser humano está arando a terra com seus instrumentos há séculos, as minhocas são muito mais eficientes nesse sentido. E esse argumento não é banal. Ele está virando de ponta-cabeça a noção tão comum de que esse animal é inferior. Sob esse ponto de vista, a minhoca é superior ao ser humano.
É uma ideia darwiniana que pode ser estendida a outras criaturas, certo?
Esse tipo de olhar que Darwin tem para as minhocas é, na verdade, uma síntese do seu pensamento como um todo. Sua visão da evolução dos animais funciona sob esse mesmo sistema. Darwin só conseguiu perceber que as espécies se transformam, do jeito que se transformam, porque estava prestando atenção em características muito pequenas, em detalhes de um indivíduo para o outro, mas tendo em vista um trabalho cumulativo de séculos e séculos, envolvendo milhões e milhões de indivíduos. Essas pequenas diferenças, ao longo do tempo, terão resultados impressionantes – é a variabilidade das espécies. Então a reflexão de Darwin é sobre como esse tempo longuíssimo, muito maior do que a experiência humana pode perceber, faz com que o pequeno se torne imenso.
Houve desafios na tradução da obra?
Bem, esse é o último livro do Darwin, então a linguagem dele já está muito depurada de qualquer tipo de excesso. Ela é simples no melhor sentido, o que às vezes torna difícil traduzir alguns aspectos, encontrar o tom certo. A minha maior dificuldade mesmo foi converter o sistema de medida imperial para o nosso sistema métrico. A cada medida que o Darwin dava, e são muitas no decorrer do livro, era preciso converter os números para metros e centímetros. Foi a parte mais trabalhosa no fim das contas. Quanto a termos técnicos que dizem respeito à fisiologia das minhocas ou a questões de arqueologia, por exemplo, eu tive de consultar especialistas dessas áreas para encontrar as expressões correspondentes em português.
Em que medida o livro das minhocas dialoga com as obras mais conhecidas de Darwin?
Acho que o Darwin tem uma grande preocupação, desde o começo da carreira e de suas primeiras investigações, sobre como encontrar uma resposta científica para a questão da história, essa história que está acontecendo com todos os seres vivos. Darwin olha para qualquer ser vivo e consegue entrever nas suas formas hoje as histórias ali contidas. Olha para os seres humanos, que estão ainda por aí, e percebe sinais em seu corpo, como o dente do siso e outras estruturas aparentemente sem sentido, que um dia tiveram um propósito e revelam a longa história da nossa espécie. Ele mostra esse acúmulo de histórias invisíveis, que podem ser recuperadas e contadas através de pequenos sinais.
Nesse sentido, ele é muito parecido com o Sherlock Holmes. Aliás, o Arthur Conan Doyle [escritor que inventou Sherlock Holmes] era um leitor de Darwin, e pode ter se inspirado no método do cientista para escrever suas histórias de detetive. Porque, no fundo, ambos compartilham aquela coisa de olhar para um detalhe que muitos julgariam inútil ou sem sentido e percebem que ali está uma história a ser revelada. É o que Darwin faz no livro das minhocas. Ele percebe que essas criaturinhas, às quais ninguém dá atenção, estão contando a história de como nosso planeta virou o que ele é.