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Meu reino por um crustáceo

Caranguejos britânicos vão a veterinário antes de entrar na Europa

Por Lucilia Diniz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h53 - Publicado em 21 abr 2023, 06h00

Não é difícil imaginar um mundo sem países, cantou John Lennon, letra que me veio à cabeça ao caminhar hoje pela capital britânica — onde estou numa conferência — refletindo sobre os efeitos do Brexit no cotidiano da cidade. O que Lennon não imaginou foi que, 45 anos depois de ele compor Imagine, justamente o Reino Unido votaria por reerguer fronteiras virtualmente apagadas. Hoje, até as lagostas e caranguejos britânicos estão sofrendo consequências perturbadoras do referendo que tirou o Reino da União Europeia.

Veja-se o exemplo desses crustáceos: para entrarem no continente, agora têm de passar pelo veterinário. O tempo da pesca foi encurtado, para a carga embarcar mais cedo e compensar a fila na entrada. Os bichos viajam em tanques com água do mar, para se manterem vivos, pois só assim têm valor. E tudo isso para que boa parte deles, no fim, morra em vão, esperando a consulta, em vez de exibir suas lustrosas carapaças nos mercados franceses e espanhóis.

Os escoceses foram os britânicos que mais rejeitaram o Brexit. Ainda assim, poderiam ter sido beneficiados pelo aumento da pesca prometido pela propaganda ultranacionalista. O benefício de fato veio. Mas de que adianta ter mais carga se o desperdício também aumenta?

“Como Lennon em Imagine, posso ser uma sonhadora, mas acho que já era tempo de o mundo ser um só”

Os problemas envolvem ainda alimentos mais cotidianos. Faltam legumes e verduras na mesa dos britânicos. Grandes redes têm racionado os tomates e pepi­nos que cada cliente pode comprar. Dizem que a escassez se deve ao clima, que afetou lavouras no sul da Europa e no norte da África. E nos países frios, como o próprio Reino Unido, estufas se tornaram proibitivas, com a energia mais cara, pela guerra na Ucrânia.

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Para os agricultores do continente, porém, o problema é a ineficiência britânica para lidar com as regulações europeias. Ao optarem por se tornar estrangeiros para a Europa, os habitantes do arqui­pélago se viram afogados em papelada. A atenção veterinária não é só para caranguejos. As fazendas de gado no Reino Unido também precisam de seus médicos. Mas faltam veterinários e, pior, os profissionais do ramo vindos da Europa diminuíram, devido às regras migratórias. A dificuldade também atinge os trabalhadores temporários, que todo ano vinham de fora apenas com a carteira de identidade e colhiam quase todas as frutas e verduras produzidas em solo britânico.

Mas não é só. No episódio conhecido como “guerra das linguiças”, até a paz irlandesa foi ameaçada. Como se sabe, as duas Irlandas dividem a mesma ilha. Porém, enquanto a Irlanda do Norte é parte do Reino Unido, a República da Irlanda é parte da União Euro­peia. Para evitar reacender o conflito colocando uma fronteira entre elas, a Irlanda do Norte ficou fora da UE, mas dentro do mercado europeu. Com isso, deixou de poder receber produtos de carne da Grã-Bretanha, a não ser os congelados, como dita a Europa. Os portos ficaram congestionados, e faltou linguiça na Irlanda do Norte. A questão só se resolveu há pouco, com uma lei especial para o fluxo de produtos na ilha irlandesa. Com tantos passando fome e muitos outros sem acesso a comida de qualidade, é incompreensível que a ausência de entendimento entre os povos leve ao desperdício de alimentos, ainda mais em países desenvolvidos. Como Lennon diz em Imagine, posso ser uma sonhadora, mas acho que já era tempo de o mundo ser um só.

Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838

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